São Paulo, quinta-feira, 23 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'As Time Goes By' inspira 'Companheiro'

PATRICIA DECIA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Sou um humanista" é a frase-chave de Bruno Barreto para explicar sua adaptação de "O Que É Isso, Companheiro?", livro do deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), para o cinema.
A produção, que tem Pedro Cardoso, Fernada Torres e o norte-americano Alan Arkin no elenco, foi indicada para a mostra competitiva do Festival de Berlim.
"É exatamente o que eu queria, porque sempre foi um festival mais voltado para filmes com assuntos políticos, que têm um lado mais polêmico", diz.
E a polêmica é quase certa para a "reinterpretação da interpretação de Gabeira" sobre um episódio da luta armada no Brasil: o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969.
Em Nova York, Barreto ainda supervisiona os últimos detalhes da cópia que vai para a Alemanha e se prepara para começar as filmagens de "One Tuff Cop" (Um Tira Durão), título provisório para a história de dois amigos, um policial e um mafioso, que terá Chris Penn e Marky Mark no elenco, além de participação especial de Amy Irving, mulher do cineasta.
Num intervalo do trabalho, ele concedeu entrevista à Folha, em que conta que o elemento catalisador para o roteiro do filme foram dois versos de "As Time Goes By", tema do filme "Casablanca".
*
Folha - Como foi adaptar o livro?
Bruno Barreto - Houve um momento, em 94, em que eu quase desisti de fazer o filme. Eu já estava trabalhando no roteiro desde 86, ou seja, oito anos, com seis roteiristas diferentes, três americanos e três brasileiros. O problema todo é que esse livro é muito difícil de ser adaptado ao cinema, porque se passa sobretudo na cabeça do personagem. É um monólogo, uma reflexão, muito pouco factual.
Folha - O Gabeira se refere a ele mesmo como narrador...
Barreto - Aliás, todos os personagens existem nesse livro, menos o Gabeira. Por isso eu levei meses para decidir qual ator faria o Gabeira. Mesmo durante os ensaios, eu e o Pedro Cardoso falávamos que é o personagem mais difícil, por ser o menos definido.
Folha - E qual foi a solução?
Barreto - Eu voltei ao Gabeira pedindo mais fatos, mais histórias, porque reflexão não dá cinema. Cinema é interação de personagens, dramaturgia. Finalmente eu convenci o Leopoldo Serran, que tinha se negado a participar em 86. Em 94, ele foi para Los Angeles, mas não garantiu nada. Nós nos encontrávamos todo dia e falávamos de tudo, menos do filme.
Um dia, estávamos no carro indo para o escritório e tocava no rádio "As Time Goes By", tema do filme "Casablanca". A música tem aquela frase "It's always the same old story/ A fight for love and glory...". Leopoldo olhou para mim, eu para ele, e era isso o que todas aquelas pessoas tinham em comum, elas todas queriam amor e glória. Esse foi o fator catalisador para começar o roteiro.
Folha - Isso mudou o filme?
Barreto - Nós sabíamos que queríamos um filme sobre todas as pessoas envolvidas naquela história, não sobre o Gabeira. Não era um filme sobre a investigação de um jornalista que se envolve na luta armada contra a repressão. O livro sugere que o filme vá ser uma investigação da alma daquele personagem. Mas eu queria um filme sobre o que elas tinham em comum, desde o torturador, passando pelo embaixador e chegando aos sequestradores.
Folha - E como fica a oposição entre realidade e ficção?
Barreto - É um filme de ficção, que reinterpreta a realidade, como o próprio livro já era uma reinterpretação. O filme são as minhas impressões sobre o livro do Gabeira e sobre aquela época. Fiz um filme pegando as duas pontas da ferradura, que estão distantes e próximas ao mesmo tempo, a extrema direita e a extrema esquerda. Sou um humanista e o filme é sobre os seres humanos.
Folha - Os personagens então são simbólicos?
Barreto - Sim. O torturador é um personagem simbólico, ele não é baseado em ninguém. O próprio Gabeira vira um personagem simbólico que vê as fronteiras entre ser um intelectual e ter que trabalhar com a rigidez militar. O embaixador Elbrick não é favorecido. Ele sobressai porque é o fiel da balança, é o pêndulo, não está nem de um lado, nem do outro.
Folha - Você acha que o filme provocará polêmica?
Barreto - Cinema é arte popular, pelo menos o tipo de cinema que eu faço é para as platéias. Não fiz esse filme para quem já sabe a história, mas para a maioria das pessoas que vão vê-lo. Mesmo no Brasil, e mesmo os que já sabem. Falo isso baseado nas projeções que já aconteceram, as pessoas ficam extremamente emocionadas. O filme vai causar polêmica porque não toma nenhum lado. É um filme sobre as pessoas envolvidas nessa história, não sobre as idéias.
Folha - O fato de ser falado parte em inglês e ter personagens e atores norte-americanos ajuda na carreira internacional?
Barreto - Não. O que ajuda é que se trata de uma história muito atual. Olha o que está acontecendo no Peru. Sucesso é 50% da qualidade da sua obra; os outros 50% são timing, o momento.
Folha - E qual a recepção internacional até agora?
Barreto - A curadora de cinema do MoMA (Museu de Arte Moderna), Adriane Mancia, que já disse que não gostava de filmes meus como "Gabriela" e "Além da Paixão", fez um comentário muito interessante, que ouvi também de dois outros americanos. Eles achavam o filme muito bem escrito. Para eles, dá para ver que os diálogos não são sentenciosos. Essa é uma das grandes qualidades e mérito do Leopoldo Serran.

Texto Anterior: Forte está destruído
Próximo Texto: Deep Purple toca em São Paulo em março
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.