São Paulo, sexta-feira, 24 de janeiro de 1997
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50 anos em 5 não são o mesmo que 4 anos em 8

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Com um pouco de constrangimento e sob o risco de me tornar chato aos próprios olhos, volto hoje a um assunto que foi considerado "polêmica" por colegas, leitores, colaboradores e até mesmo por um editorial da Folha. Tudo começou quando mestre Clóvis Rossi, do qual sou humílimo discípulo, no estreito espaço da sua coluna, lançou a hipótese de ser FHC o maior presidente desta segunda metade do século 20.
Vinda de quem veio, fica afastada qualquer suspeita de agrado ao poder, uma vez que Rossi é uma das penas mais lúcidas e independentes da imprensa brasileira -consenso que nos honra a todos os seus amigos, leitores e admiradores.
O reparo que levantei sobre a sua apreciação da futura glória de FHC foi o argumento que ele usou para colocar JK num aparente e desconfortável segundo lugar: como sabemos, JK não conseguiu eleger o seu sucessor e isso ficou parecendo, na aferição de Rossi, a pedra de toque para o julgamento histórico de um presidente.
Argumentei contrariamente sem necessidade de invocar os possíveis méritos de JK. Lembrei que Churchill não fez o sucessor logo depois de ter sido, por algum tempo sozinho, a consciência moral da humanidade e sua maior expressão política.
Eu sei, o Rossi sabe, muita gente sabe o nome do sucessor de Churchill: afinal, vivemos mais ou menos dessas coisas. Mas duvido que 95% da espécie humana que hoje habita o planeta saiba quem foi o vencedor daquela eleição na Inglaterra logo depois da Segunda Guerra Mundial.
Poderia invocar outro argumento: FHC ainda não terminou seu mandato e sua popularidade atual, longe de ser a maior de nossa recente vida republicana (Sarney, Collor e Itamar tiveram, em momentos precisos, índices bem superiores), está sujeita às turbulências de praxe e circunstância.
Semana passada, lembrei que dois historiadores deste século, William Schirer e Joachim Fest, garantem que, se Hitler tivesse morrido logo após a rendição da França, em 1940, teria sido o maior estrategista militar da história e o mais brilhante político da era moderna.
Hitler não foi uma coisa nem outra, foi apenas um monstro -e é como monstro que ele entra na crônica do nosso século. (Não estou insinuando que FHC seja um monstro, mas, lembrando as comadres de Machado de Assis, nunca se sabe).
Poderia decupar todos os argumentos brandidos pelos admiradores do atual presidente mas acho prematuro o debate e afobada a conclusão. Detenho-me aqui, tão óbvia me parece a cautela.
Volto a JK, que considero um político frustrado, provinciano e, em certa medida, desastrado. Tanto que purgou imerecido castigo. Criou-se a tendência de cultuar JK não pelos seus méritos políticos, que foram escassos, mas pelo dinamismo administrativo, pelo clima de euforia que soube imprimir a seu governo, num grau e num gênero que transbordou para a sociedade, resultando naquilo que começa a ser chamado de "era JK" ou "anos JK".
Luís Nassif fatiou os sucessos administrativos de seu governo como se fosse uma picanha, mostrando que isso foi feito por fulano, aquilo, por sicrano etc. Pode-se também fatiar a importância de Napoleão e reduzir a enormidade de sua presença na história em fotogramas isolados e estanques.
Os grandes momentos de sua glória seriam distribuídos a contemporâneos. O Código Civil -que levou a revolução burguesa ocorrida na França de 1789 ao resto do mundo- não teria sido obra dele, embora não tenhamos outro nome para designá-lo do que "Código Napoleônico".
Suas vitórias militares foram obtidas por generais que hoje são nomes de estações de metrô em Paris: Duroc, Junot, Berthier, Ney, Murat etc. O 18 Brumário seria obra de seu irmão Luciano -e por aí vai. Mas, no plano da Grande História, Código Civil, Marengo, Austerlitz, Iena, 18 Brumário levam obrigatoriamente uma grife: Napoleone Buonaparte.
É mais ou menos isso, guardadas as proporções, que ocorre com JK. Ele não saberia diferenciar um sambão de Ataulfo Alves de uma batida bossa nova do Tom Jobim. E no dia seguinte do nosso primeiro título mundial no futebol, não saberia escalar metade da seleção nacional.
Ficaria admirado ao ler o livro da Maria Victoria Benevides sobre o seu governo, no qual é dito, com rude, mas brilhante clareza, que justamente porque ele não quis alterar o status quo da sociedade (não era disso), exatamente porque não tocou no pacto social, ao realizar materialmente uma administração que mexeu fundamente com a sociedade, acabou por transformá-la.
Bem, o meu espaço também não é tão generoso assim e paro por aqui. Esses dias, li não sei onde que JK fez um governo de 50 anos em 5. O atual presidente está se esbofando, dando demonstrações de vulgaridade explícita, para fazer quatro anos em oito. É a pequena diferença.

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