São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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"O que eu queria escrever, eu já escrevi"

MATINAS SUZUKI JR.; MAURICIO STYCER

Folha - Mas, bem ou mal, hoje há uma democracia, saímos de um regime militar, houve uma evolução.
Callado - Não há dúvida. Por isso, eu estava dizendo que, apesar dos defeitos do Fernando Henrique, eu votaria nele. Este homem acabou com a inflação. Pelo menos, fez isto. É um homem direito, está fazendo um governo razoável, tem feito besteiras a granel, mas fez um negócio positivo também. Folha - Houve uma época no "Correio da Manhã" em que Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Holanda trabalhavam como revisores. Como era o jornal?
Callado - O "Correio" tinha o defeito de ter um proprietário grã-fino, Edmundo Bittencourt, que deixou muito dinheiro para o seu filho Paulo, muito inteligente, mas maluquete e muito boêmio. Era o melhor jornal do Brasil, o mais bem escrito de longe. Eu duvido que você pegue um jornal brasileiro tão bem escrito como foi o "Correio" naquela época.
Folha - O sr. foi redator-chefe do "Correio" entre 1954 e 60. Antes e depois dessa experiência, o sr. trabalhou como repórter. Como foi a experiência de dirigir um jornal? Callado - Não gostei. Não gosto de mandar nos outros. Acho uma coisa desagradável, chata. Havia lá um português, Tomás Ribeiro Colasso, que só chamava a rainha Elizabeth, da Inglaterra, de Isabel. Ele era todo nobre, muito culto. Brigou comigo... Ele já morreu, mas até hoje o filho dele me odeia por causa da época do jornal.
Folha - Ele escrevia Isabel, o sr. mudava para Elizabeth?
Callado - É. E acabou parando com aquilo. Mas até hoje o filho dele me esculhamba porque eu não deixava o pai usar o nome da rainha como ele queria.
Folha - O sr. deixou o Brasil em 1941. O sr. chegou a ter alguma ilusão com o getulismo?
Callado - Achei que daquela mixórdia toda ia resultar algo. E, simplesmente, não aconteceu.
Folha - O sr. chegou a ser perseguido pelo Estado Novo?
Callado - Eu não tinha muita culpa no cartório, fui preso, aquela coisa toda, mas era logo solto. Eu podia ter ficado preso três, quatro anos. Isso iria me modificar, tenho certeza. Mas não aconteceu. Olha, não me aconteceu nada (risos). Palavra de honra. Quando paro para pensar, vejo: eu me meti em tudo quanto havia, mas não me aconteceu nada.
Folha - Mas o sr. se meteu em coisas que pouca gente se meteu. Foi o único jornalista latino-americano a ir ao Vietnã do Norte durante a guerra. Foi um dos primeiros jornalistas a estar no Xingu...
Callado - Isso é verdade. Você tem razão. Fora do Rio de Janeiro, as coisas aconteceram. É um pouco injusto eu dizer que não aconteceu rigorosamente nada, mas de definitivo, de alterar as coisas, não aconteceu nada. Nem na vida do Darcy (Ribeiro), que tanto fala nela, o tempo todo, aconteceu...
Folha - O Otto Lara Rezende disse uma vez que, vendo o Roberto Marinho, o Paulo Bittencourt, os donos de jornais da época, ele achava que o que tinha menos futuro, como empresário, seria o Roberto Marinho. O sr. conviveu com Roberto Marinho?
Callado - Muito. Comecei a trabalhar no "Globo Juvenil". A diferença de idade entre Roberto e eu é de 12, 13 anos. Assumi muito aquela amizade de um homem um pouco mais velho que eu, mas muito jovem de espírito. Roberto não é um homem muito inteligente, não faz parte da coisa dele. Por outro lado, não tem nada de burro. Nunca vi ninguém passar Roberto para trás em coisa nenhuma, nem mulher, nem nada. Ele era bem mulherengo, aliás.
Fizemos uma grande amizade. E eu, graças a Deus, até hoje, nunca precisei dele. Tem essa grande vantagem, de que eu me gabo muito. E me dou muito bem com ele até hoje, gosto dele como pessoa. Tenho visto como ele tem ajudado colegas nossos que caem na pior. Ele é sempre correto. É um homem direito, muito boa gente.
Folha - O sr. também conheceu outro grande empresário de comunicações, o Assis Chateaubriand.
Callado - Conheci, mas Chateaubriand eu tive o cuidado de nunca trabalhar com ele. Eu vi como era o negócio lá, e não era sopa não. Mesmo para o (Carlos) Lacerda, para os mais desaforados, ele era muito mandão, queria mandar nos outros. Sempre mantive uma distância com o Chateaubriand.
Fui a um último almoço na casa do Chateaubriand, uma coisa sensacional. Ele já não falava mais. A enfermeira falava por ele. Ficava furioso quando ela não entendia o que ele dizia e brigava com ela no meio da mesa. Foi lá na casa amarela, em São Paulo. Quando eu cheguei, ele disse: "Convidei um comunista para divertir vocês". Tinha uma coleção de beija-flores que era uma preciosidade.
Era um homem apaixonado pela vida. Todo torto, não queria morrer, não. De jeito nenhum.
Folha - Olhando retrospectivamente, o que pensa do Lacerda?
Callado - Acho que o Lacerda tinha uns laivos de gênio político. Das pessoas que conheci pessoalmente, o que tinha uma imaginação política mais fervente acho que foi o Carlos Lacerda. Você não faz idéia. Bonitão, aquela coisa toda.
Você começava a conversar com ele, era uma coisa fantástica. Sobretudo para um brasileiro. Aqui, sempre se dá uma cravo, outra na ferradura. Com o Lacerda não tinha essa conversa. Ele metia a pata naquilo... Era uma figura inspiradora. Este podia ter feito uma revolução no Brasil. Tá aí. Por que ele não fez, até hoje eu não sei.
Folha - Mas essa revolução contaria com o seu apoio?
Callado - (risos) Tenho a impressão que não. Mas ele tinha essa força. Era impressionante. Não tinha medo de nada.
Folha - Saindo do mundo da política, um outro personagem com quem o sr. teve muita ligação foi o Cândido Portinari. Como era a convivência do sr. com ele?
Callado - Era um homem muito tímido. Maria era quem realmente dava as ordens naquela casa. Não que ela fosse opressora, no sentido desagradável da palavra, mas era ela que mantinha a casa. Para mim, era um feriado ir na casa dele. Ele só pensava na pintura. Era uma vida muito bonita. Fiquei com pena que ele morreu tão cedo.
Folha - Para o sr., ele é o grande referencial da pintura brasileira? Callado - Tranquilamente. Mesmo aquela coisa do Mário Pedrosa, que de repente começou a esculhambar o Portinari...
Eu tenho guardado um artigo do Mário Pedrosa que é de você se esconder embaixo da mesa. Ele diz que Portinari é muito maior do que Picasso, muito mais inovador.
Parei de acreditar no Mário Pedrosa por causa do Portinari. Quando ele surgiu, o Manuel Bandeira, o Mário de Andrade, o pessoal do Rio e de São Paulo, todo mundo ficou encantado com a novidade. De repente, começaram a pichar. Tem cabimento? Eu guardei o artigo do Mário Pedrosa porque é um escândalo.
O Mário Pedrosa era um homem extremamente inteligente e extremamente desorganizado. Na casa dele você não via a parede, era totalmente coberta de quadros. Todo mundo gostava dele, ele era muito acolhedor. Mas dizia muita besteira. Até hoje discuto com Ferreira Gullar por causa do Mário. Folha - É verdade que o sr. escreveu a biografia do Portinari enquanto ele pintava o seu quadro?
Callado - É verdade. Eu ia muito almoçar lá. A família dele era muito simpática. Uma vez, Candinho (Portinari) ficou furioso. Ele era pequenininho, loiro, muito gordo. Um dia estava em casa de roupão de banho. Aí, foi atender a porta. O sujeito bateu na porta e, todo amável e pomposo, disse: "O sr. é a mãe do pintor?"
Folha - Com Mário de Andrade o sr. chegou a conviver?
Callado - Pouco, muito menos do que gostaria. Quem teve a grande convivência com ele aqui foi o Moacir Werneck de Castro.
Folha - Ele morou um período no Rio. Aliás, ele dizia que foi o pior período da vida dele.
Callado - Era uma relação complicada. Hoje em dia, você fala que um sujeito é homossexual e tudo bem. No tempo dele, era diferente, ele tinha que manter uma linha diferentíssima. Ele tem uma carta escrita ao escritor mineiro Rosário Fusco absolutamente impagável, sobre um acesso de tesão furiosa que ele tem em cima de uma árvore (risos). É impagável!
Folha - Você foi um grande repórter. Hoje a grande reportagem está desaparecendo da imprensa escrita. Você acha que é um sinal de decadência do jornalismo perder a dimensão da reportagem?
Callado - No momento, a gente está com muita pressa de fazer tudo ao mesmo tempo. E, aí, haverá correções. Mas não muitas. O mundo está indo num caminho irresistível. Não vejo volta possível. Não tenho esperança de nada diferente do que a gente está tendo.
Folha - Sem juízo de valor, ou o sr. acha isso ruim?
Callado - Acho ruim. Porque você perde os poucos controles que tinha. Não quer dizer que o sujeito fique mais burro, mas estamos ficando sem referências.
Folha - O sr. é muito mais um escritor de romances do que de histórias curtas. Por que você sempre preferiu a narrativa mais longa? Callado - Nunca consegui escrever em espaço pequeno. Até hoje. Para mim, é uma questão de espaço. Por isso, gosto tanto de "Reflexos do Baile". Aquilo me obrigou a uma disciplina. É o livro que escrevi como artista.
Folha - O sr. guarda alguma lembrança da gênese desse livro, de como a idéia da forma do livro apareceu para o sr.?
Callado - A minha fonte foi o primeiro "apagon" (blecaute) que houve no Rio. De lá para cá, o Rio se convenceu que qualquer catástrofe pode resultar numa coisa daquelas. A catástrofe é irresistível. O Brasil tem a chance de se aproveitar de uma coisas dessas para se clarear. Dentro da história há muitos resíduos dessa idéia, de que no Brasil tudo é possível porque, de repente, vem uma catástrofe.
Folha - O sr. chegou a ter esperanças de que as coisas mudassem no governo Jango Goulart?
Callado - Achava o Jango muito ingênuo. Muito ingênuo. Leonel Brizola, não. Brizola é outra conversa. Quando ele voltou da Austrália, pela primeira vez, ele disse: "Minha preocupação agora é ver se as crianças daqui não comem muito. Porque na Austrália, as crianças, em casa, comem tanto que no colégio não dão nada para elas comerem". Essas são as coisas que não acontecem no Brasil. São as coisas que a gente espera que aconteçam e não acontecem...
Folha - Uma outra pessoa com quem o sr. conviveu muito, Nelson Rodrigues, brincava muito com o sr. Também brigava?
Callado - Ele gostava muito de mim. E eu gostava muito dele. Mas o Nelson era meio sacana. Uma ocasião, na casa de Miguel Lins, estávamos conversando eu, ele e Miguel Lins. Três pessoas. Sobre uns caras que tinham feito um sequestro na República Dominicana. A discussão era: estava certo eles matarem alguém, se fosse o caso? Eu disse: acho que seria certo. No dia seguinte, estava no jornal. Safadeza, não?
Folha - Aparecer uma declaração dessas no jornal, naquele período, era bem ruim.
Callado - Era cana, né? Parei de falar com ele, três meses. A gente se gostava muito. Eu tinha um compadre, que era compadre dele também, o Salim, que ele adorava. "Eu gosto do Salim porque o Salim só elogia os outros aos berros." O brasileiro, em geral, quando elogia, é devagarzinho. "Fulano de tal é um bom sujeito, é inteligente". O Salim dizia (imita gritando): "É um homem maravilhoso!!!". Folha - Fazer 80 anos tem algum significado especial para o sr.?
Callado - É um horror! Um horror! Oitenta anos é a idade para o sujeito morrer, nada mais além disso. Não tem graça nenhuma. Não tem sentido nenhum, nenhum. Uma besteira. Quando a coisa se agravou, tive que fazer radioterapia, eu preferia mil vezes morrer. Não que eu estivesse em desespero. Adoro a minha mulher. Não se trata disso. Trata-se da inutilidade de você ficar aqui.
Folha - Mas o sr. não tem vontade de escrever?
Callado - O que eu queria escrever, já escrevi. Não tenho mais vontade, palavra de honra.
Folha - Não tem algum livro que o sr. começou a escrever e parou?
Callado - Tem, tem. Mas não estava suficientemente articulado. Se estivesse, eu teria pena.
Folha - E a Academia? Por que o sr. resolveu entrar, finalmente, para a Academia?
Callado - Não me arrependo de ter entrado. Aquilo é um clube de velhos, mesmo. O que une a Academia é aquela mania de livro. Todo mundo acha que fez a obra-prima da literatura brasileira. Isso existe em cada um daqueles caras lá. É, realmente, um ambiente para gente velha e que gosta de livro.
Folha - A Academia vem mudando nos últimos anos. O arco ideológico aumentou. Agora há até uma mulher na presidência.
Callado - A Nélida (Piñon) foi uma ótima escolha. O Josué (Montelo) é muito mandão. O apelido dele é Josuão. A gente, se livrando dele, se livrou de uma tirania. É um homem direito, mas muito mandão. Afinal de contas, a Academia é um acontecimento como outro qualquer. Está fazendo 100 anos, como o Barbosa Lima. É curioso.
Folha - Como o sr. vê a trajetória de Barbosa Lima Sobrinho, um homem que defende as mesmas idéias há décadas?
Callado - Aqui no Brasil, isso é uma coisa fora do comum. Não diria que é um caso extraordinário no mundo, mas, aqui no Brasil, o sujeito ter aquela absoluta linha reta, que é a vida do Barbosa Lima, é extraordinário.
Folha - E Fidel Castro?
Callado - Gosto imensamente do Fidel. Em um ano, Fidel foi capa da "Time" quatro vezes. É alguém, né? Impressionante como ele ganha as batalhas dele.
Folha - Há solução para Cuba? Callado - Realmente, não tem solução. Vai acabar mesmo na mão dos EUA. Mas não tenho dúvidas de que Fidel vai empurrar as soluções para o fundo do palco.

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