São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Antonio Callado chega aos 80 e revê obra

MATINAS SUZUKI e MAURICIO STYCER

MATINAS SUZUKI JR.; MAURICIO STYCER
ENVIADOS ESPECIAIS AO RIO

O escritor, autor de 'Quarup', afirma que sua única obra importante é o romance 'Reflexos do Baile', de 76

O escritor Antonio Callado, um dos mais importantes romancistas brasileiros contemporâneos, está completando hoje 80 anos. Vai comemorar a data em família, em seu apartamento no Leblon (zona sul do Rio), onde tenta se recuperar dos não poucos danos físicos causados por um câncer.
Nesse momento, Callado aproveita para fazer um balanço de sua obra e de sua vida. Autor do celebrado "Quarup" (1967), o escritor e colunista da Folha afirma que a sua principal obra, a única "que tem força em si", é "Reflexos do Baile".
Lançado em 1976, esse romance narra a tentativa de um grupo terrorista de esquerda de sequestrar uma série de diplomatas estrangeiros durante uma festa no Rio -situação muito semelhante à que está ocorrendo hoje na embaixada do Japão em Lima, tomada por guerrilheiros do grupo Tupac Amaru.
Angustiado, Callado diz que se envolveu em todas as lutas políticas possíveis nos últimos 60 anos- "e não deu em nada".
Na última terça-feira, antes que fosse feita qualquer pergunta, iniciou a entrevista fazendo o seguinte balanço de sua obra:
*
Antonio Callado - É o seguinte: do ponto de vista da minha carreira de romancista, acho que um único romance meu tem força em si: "Reflexos do Baile" (1976).
Eu sou para sempre grato ao (Davi) Arrigucci. Ele estava estudando Cortázar e se dedicou muito ao meu livro (no ensaio "O Baile das Trevas e das Águas", publicado originalmente no extinto semanário "Opinião"). Diante dos meus outros livros, "Reflexos do Baile" é, para mim, fora do comum. Tive a sorte de contar com a sensibilidade do Arrigucci, que também sentiu isso no meu livro.
Folha - Em "Reflexos do Baile" há uma mudança de estilo e de uso da linguagem. O sr. parece ter trabalhado muito mais a linguagem nesse livro, não?
Callado - Sabe o que aconteceu? Foi o primeiro livro que escrevi fora de jornal. Foi o primeiro livro que fiz inteiramente à vontade. O que eu queria escrever, eu escrevi.
Folha - Que livros o influenciaram ao fazer "Reflexos do Baile"?
Callado - O livro que isoladamente mais me influenciou foi "Memorial de Aires" (1908), de Machado de Assis.
Você tem a impressão que ele está falando de coisas sem a menor importância... É o fim da escravidão no Brasil, aquela coisa no meio da rua, aquela alegria, aquele negócio: "Ah, que bom! Acabou a escravidão!" E, de repente, por baixo daquele aparente marasmo, você vê o contrário, você vê a fúria.
O tal barão que Machado de Assis inventa é uma figura fascinante, mas é uma figura pequena no livro. Você vai lendo, vai lendo... De repente, ele começa a sair de dentro daquela coisa. Então, você entende que ele, que parece o homem mais cordato do Brasil inteiro para acabar com a escravidão, é um homem que só acredita em escravidão acabada com os escravos dele, se ele acabar com a escravidão.
É o personagem mais extraordinário que ele já fez... Quando aquele homem diz, com aquela frieza dele: "Escravo meu, só eu solto. Vou soltar antes da Lei Áurea". Que loucura...
Folha - O sr. falou muito de "Reflexos do Baile", mas o sr. não teme ficar conhecido como autor de "Quarup" e não desse livro?
Callado - Temo.
Folha - Perguntando de outra maneira: com essa avaliação sobre "Reflexos do Baile", o sr. não teme chatear os fãs de "Quarup", que foi o seu livro de maior sucesso?
Callado - Tenho a impressão que "Quarup" é um livro mais durável. É um livro muito mais superficial e muito mais durável. Agora, o outro ("Reflexos do Baile") é muito melhor (risos). Sinto que "Quarup" tem toda uma capacidade de reaparecer, por causa da problemática dos índios. Tem boa chance de permanecer.
Folha - O seu processo de transformação num homem de esquerda foi conflituoso com a sua formação religiosa?
Callado - Se o próprio papa já está concordando com Darwin, o que falta? Não falta mais nada.
Nos anos 60, as coisas estavam acontecendo na cara da gente. A igreja sofreu com a tortura a alguns padres... A igreja era subversiva. De repente, a subversão se escoou. Coisa curiosa, né? O Brasil é um país inseguro de si mesmo.
Quando fico pensando naqueles livros americanos enormes sobre a Igreja Católica do Brasil, as torturas horrorosas, os livros de frei Betto, do Boff... Tudo isso concorria, naquela ocasião, para a gente acreditar que ia haver um choque entre a fé e essa coisa bruta, que era a revolução de 64. De fato, não houve. Ou melhor, houve gente que padeceu horrores, mas o movimento não houve.
Folha - Como foi a sua primeira viagem ao Xingu?
Callado - Eu viajei à Europa durante a Segunda Guerra. Estive na Inglaterra, depois na França. Quando acabou a guerra, parecia também que o Brasil ia tomar uma espécie de rumo. E, mais uma vez, não aconteceu nada... O suicídio do Getúlio foi uma obra de arte, uma obra de arte forte. Aquilo podia ter dado uma revolução.
Na minha vida, eu diria, o Brasil tem sido uma série de falsas expectativas. Tenho tido uma série de decepções. Em 47, quando voltei ao Brasil, imaginei que aqui ia haver alguma coisa. Tinha havido uma guerra mundial, o Brasil tomou parte, sem nenhuma vergonha. Mas, mesmo assim, quando chega a hora de as coisas mudarem, as coisas não mudam.
Não tenho mais esperanças. Fazer o que com os índios? É lamentável, mas não há o que fazer com os índios. Passou o tempo. Você podia ter feito escolas para índios, e agora ter um grupo de índios formados. Mas cadê? Onde estão as universidades? O que os índios aprenderam? Para cada índio alfabetizado que você encontra, há 500 que não sabem uma palavra.
Folha - Falando de problemas insolúveis, quando o sr. foi ao Pontal do Paranapanema?
Callado - No governo Montoro (82-86). O secretário era o (José) Serra. Ali parecia que a coisa ia se resolver. O Serra é um homem de ação, era jovem. O Montoro estava numa fase boa...
Folha - O sr. chegou a achar que o problema iria ser resolvido?
Callado - Entendi que aquele momento era decisivo, uma divisão de águas entre Maluf e Montoro, que não se comparam, né? Evidente. Aliás, eu nunca fui muito Fernando Henrique, nem há ninguém da Folha que seja. Mas, amanhã, se me perguntassem, diria: vou votar em Fernando Henrique. Acho que é uma coisa meritória aumentar o mandato dele. Mas ninguém acha, não. Só eu.
Folha - Por quê?
Callado - Ninguém fez o que ele fez, na minha frente, nos últimos 40 anos. Ele acabou com aquela humilhação da inflação, aquela coisa vergonhosa dos americanos virem aqui, o tempo todo, dar palpite... Fiquei admirador dele. É um homem culto, preparado. Agora, é vaidoso, tem todos os defeitos possíveis e imagináveis.
O problema agora são esses caras, esse sujeito de Mombaça, como é o nome dele?
Folha - Paes de Andrade.
Callado - Que coisa horrorosa, que nojo. Incrível. O Brasil é um país curioso, é um país extremamente sem-vergonha, não tem a chamada vergonha na cara.
Folha - Voltando à época de "Reflexos do Baile", um período em que o sr. foi várias vezes preso. As suas referências à época são sempre bem-humoradas. Como conseguia conservar o bom humor?
Callado - Porque eu não conseguia acreditar naquela patacoada. Estive preso umas quatro vezes. Simplesmente, não acreditava naquilo. Uns oficiais de cavalaria altos, de chicote na mão, me obrigando a carregar um quadro do Guevara, que eu tinha, enorme.
Folha - O sr. esteve na prisão com Gilberto Gil e Caetano?
Callado - O Gilberto Gil sofreu muito. Eles aporrinharam muito o Gil. Eles detestavam ele... Tinha um cara desse tamanhinho, horroroso, um oficialzinho de segunda categoria, esse era uma peste. Vivia aporrinhando o Gilberto Gil. "Por que você não corta essa barba, Gilberto?" Ele respondia: "Eu não estou de barba, eu uso barba".
Era muito avacalhante. Aí, o oficial levava o sujeito lá para fora. Tinha um muro branco para dar idéia que ele ia ser fuzilado. Uma porção de bobagens desse tipo.
Folha - Como o sr. recebeu a notícia do fechamento do Antonio's?
Callado - Eu cito, na abertura do livro ("Bar Don Juan"), um texto do Auden: quando chega um determinado momento, não há mais nada a fazer, a não ser abrir um bar. A idéia era essa: para dar um jeito no Brasil, só mesmo abrindo um bar. E o bar funcionou até agora. Grandes lágrimas estão sendo derramadas porque estão fechando o Antonio's.
Folha - O sr. era frequentador?
Callado - Ia muito lá. Foi uma época muito divertida. Muitas brigas com o Carlinhos de Oliveira. Um sujeito correndo atrás do outro, essas maluqueiras, aconteciam quase todo dia. Essa época do Antonio's ainda dará um livro histórico muito engraçado.
Folha - O sr. não está sendo muito severo com o sr. mesmo? Afinal, o sr. escreveu "Bar Don Juan", um livro divertido sobre essa época.
Callado - Não tinha vontade de reescrever nada do que eu escrevi. Não quer dizer que eu não goste do livro ("Bar Don Juan"), jogue o livro fora. Não se trata disso. Mas não tem nada que o segure. Ao passo que "Reflexos do Baile", não. Esse foi um livro que eu trabalhei. O primeiro e único. Depois não tive tempo de fazer outro...
Folha - E "Sempreviva"?
Callado - Gosto muito de "Concerto Carioca". Esse aí, acho que dava um bom filme.
Folha - E as adaptações cinematográficas dos romances do sr.?
Callado - Uma pena, uma pena. Quando saiu "Quarup", a primeira pessoa que quis filmar o livro foi o Glauber (Rocha). Mas aí vimos que nem ele nem eu tínhamos muita experiência.
Quem pegou o livro acabou sendo o Ruy Guerra. De início, ele teve uma idéia que me pareceu luminosa. Ele pensou em fazer um filme só sobre a parte do Xingu. Achei ótimo. Ele não fez, na ocasião. Aí, passaram-se os anos, e o Ruy Guerra voltou ao assunto, mas totalmente esquecido da idéia original. Voltou com a idéia de filmar o "Quarup" inteiro. Ficou um filme pesadérrimo, chatíssimo.
Folha - O sr. esteve com Glauber em várias situações, até na prisão.
Callado - Sim. Estivemos juntos na prisão, na Europa... Glauber é uma das figuras mais importantes que conheci. A única coisa é que ele nunca conseguiu trabalhar para ganhar dinheiro. Ele só entendia trabalhar de forma criadora. Não adiantava perguntar: "Mas, Glauber, você vai comer o quê, amanhã?" Essa era uma pergunta que, para ele, não tinha o menor sentido. Arranjava aquelas mulheres bonitas lá em Paris e não tinha rumo, não tinha rumo nenhum.
Guardei uma última entrevista do Glauber, em que ele se propõe ser candidato a presidente da República. Para ter dinheiro! Ele não tinha onde cair morto. Não tinha a menor idéia de sobrevivência. Glauber morreu de fome. Nessa entrevista ele está querendo se eleger presidente da República para poder fazer cinema.
Folha - Quais são os escritores brasileiros importantes?
Callado - O Brasil tem dois escritores de lascar, Machado e Guimarães Rosa. É pena que Guimarães Rosa seja tão difícil. Machado, não. Qualquer francês traduz o Machado. Qualquer inglês traduz o Machado, e você colhe aquele sumo todo do Machado. O Rosa, não. O Rosa é muito mais difícil de traduzir. É uma pena.
Folha - Como é que o sr. escolhe o nome de um personagem?
Callado - Tenho visto muita gente que se ocupa disso. Nunca me preocupou. Esse negócio de nome nunca teve importância para mim. Em "Quarup", o apelido (Nando) calhou bem ao padre.
Folha - Um personagem com nome engraçado é o jornalista de "Memórias de Aldenham House", Perseu Blake de Souza.
Callado - Esse é um livro que não tem nenhuma importância. É a tal história, você facilita e diz: por que eu não hei de escrever um livro policial? É tão fácil... Mas não dá resultado. É besteira. Você precisa botar a sua alma naquela coisa. Pode ficar um livro bom, agradável, sem defeitos maiores, mas também não tem valor.
Folha - Durante muito tempo, o sr. acreditou na missão histórica da literatura. Hoje, num mundo tão sem referenciais ideológicos, o sr. continua com a mesma visão?
Callado - Não acredito em mais nada daquilo. Nada, nada, nada. Outro dia, estava falando isso com o (Antônio) Houaiss. Perdi completamente o interesse em operações políticas no Brasil. Não acredito que elas venham. Não vejo como podemos sair daqui, agora.
Acho o mundo muito esculhambado, no momento. Não vejo esperança... Esse negócio de Internet, não tenho o menor interesse.
Folha - O que o sr. está lendo?
Callado - Estava numa fase intensa de releitura. Mas, com essa história, levei uma cacetada. Eu tinha um câncer de próstata, que estava controlado. De repente, ele começa a se descontrolar. Aí, é um inferno. Radioterapia, o cabelo cai, um inferno. Mas acho que estou tirando o pé do atoleiro.
Não que isso tenha muita importância para mim. Para mim, agora, morrer ou não morrer é exatamente a mesma coisa. A única coisa é a minha mulher...
Mas, do ponto de vista geral, não tenho a menor esperança de ver coisas diferentes na minha frente. Lutei muito, é verdade... E não deu em nada. Hoje, eu realmente não acredito em coisa nenhuma que possa acontecer no Brasil, ou aos homens, de um modo geral. Tem essa história que há água em Marte... É interessante, é claro, mas não tem importância, também.

LEIA a continuação da entrevista na pág. 1-13

Texto Anterior: A vaca pulou a cerca
Próximo Texto: "O que eu queria escrever, eu já escrevi"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.