São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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A retórica da reeleição se tornou terrorista, imperial e golpista

Teotônio Vilela e Tancredo Neves nunca fizeram mal a Fernando Henrique Cardoso. É verdade que o "Menestrel das Alagoas" o ofuscava quando descia nas greves do ABC dos anos 80. Também é verdade que Tancredo não o colocou no ministério. Nenhuma das duas coisas pode justificar o que FFHH deixou que se fizesse com a memória desses dois batalhadores da causa da liberdade.
Os pajés do Planalto escolheram o Instituto Tancredo Neves (do PFL) e o Instituto Teotônio Vilela (do PSDB), para o papel de cambonos das mensagens publicitárias da campanha pela reeleição. A conta foi terceirizada com uma vaquinha de empresários. Tancredo e Teotônio entraram com a fachada.
Pois num dos quatro filmes mostrados na televisão uma moça saiu-se com o seguinte:
"Tem gente que é a favor da reeleição, mas diz que ela só deve valer para o próximo presidente. Diz que não se devem mudar as regras no meio do jogo.
Sabe o que é que dá medo? É que daqui a dois anos a gente não tenha o direito de votar de novo no presidente, e aí correr o risco de mudar as regras do Real, do controle da inflação, do desenvolvimento do país.
E são essas regras que não devem mudar."
Um texto desse tipo pressupõe que o Brasil seja habitado por uma tribo de néscios, e que as normas constitucionais tenham o valor de regras esportivas. Desrespeita até mesmo a inteligência das pessoas que acham necessário dar a FFHH o direito de disputar a reeleição. Partiu do presidente a idéia de cancelar o fuzuê (por razões práticas), mas partiu de seu governo a idéia de amparar semelhante despautério (por razões políticas). Uma fala terrorista, imperial e megalomaníaca. Pior: golpista.
Terrorismo
É uma fala terrorista porque instrumentaliza o medo. Puseram na voz da moça o medo que se FFHH não for reeleito seu lugar seja ocupado por um Cavaleiro do Apocalipse. Fez-se isso ameaçando o povo com o fantasma da choldra. Se a escumalha tiver que escolher entre FFHH e um outro, está entendido que fará a escolha certa, mas se ele faltar ao páreo, está dito que se corre o risco de ela perder o senso. Sem FFHH a patuléia se bestializa e o país arrisca perder o rumo. Portanto, não é só o caso de se reeleger FFHH, mas de conjurar o risco de a plebe votar errado.
Imperialismo
É uma fala imperial porque fizeram com que a moça associasse o bom andamento da administração pública ao direito de votar de novo em Fernando Henrique daqui a dois anos. Por que dois? Que tal 22? Da moça da propaganda ao presidente do Planalto, até hoje não apareceu uma só defesa da reeleição como aquilo que é: a inclusão, no Direito Constitucional brasileiro, do princípio que permite a recondução dos ocupantes de cargos executivos, inclusive prefeitos e governadores. O que se discute é a permanência de FFHH e de sua coligação tucano-pefelê no Planalto. Posta dessa maneira, a questão desliza para o personalismo monárquico. Uma espécie de 18 Brumário de Fernando Bonaparte. Logo ele, que até bem pouco tempo dizia, no bom estilo republicano, que não pretendia se meter no debate da reeleição.
É uma fala megalomaníaca porque atribui ao presidente da República uma carga salvacionista que só se pode comparar à de Getúlio Vargas , durante o Estado Novo. FFHH é o real, o controle da inflação e o desenvolvimento do país. Antes dele e além dele, só a treva. Essa divinização do poder é coisa inédita no Brasil. Houve na Argentina com o peronismo, ainda há em Cuba com o fidelismo, mas, em Pindorama, é novidade.
Mesmo um ditador como o general Emílio Garrastazu Médici, dispondo do sucesso econômico, da popularidade e de mais de dois terços de maioria cativa no Congresso, rebarbou as tentativas dos áulicos para sacralizá-lo e prorrogar-lhe o mandato. No dia 15 de março de 1974 terminou seu turno de guarda, deixou o palácio e foi viver em paz num modesto apartamento de Copacabana.
Golpista
É uma fala golpista porque pressupõe um dilema entre dois tipos de regras. De um lado a Constituição, que o texto dado à moça denominou "regras do jogo". De outro, o êxito que o governo se atribui e que o mesmo texto denominou de "regras que não devem mudar". Os Institutos Tancredo Neves e Teotônio Vilela informaram aos cidadãos que o presidente da República deve permanecer no Planalto por conta de regras que, além de não estarem na Constituição, estão acima dela. Assim, o presidente, eleito de acordo com uma Constituição que jurou defender, se legitima por meio de "regras" estranhas ao Estado de Direito.
Em 1971 o sociólogo Fernando Henrique Cardoso participou de uma seminário na Universidade de Yale. Era um grupo de sábios que discutia o futuro da ditadura brasileira. Havia quem previsse novas modalidades de militarismo ou até uma "portugalização" do Brasil. Nessa altura apareceu a suave figura do professor Juan Linz, um espanhol que por cá nunca tinha posto o pé. Ele explicou que os militares brasileiros legitimavam seu poder pelo desempenho e previa que, quando acabasse o sucesso, a ditadura iria à breca. Bingo. Em 1982 o Brasil quebrou, em 1985 Tancredo Neves foi eleito presidente, e o último dos generais saiu do palácio pela porta dos fundos.

Fim de feira
Circula no governo a idéia de transformar uma parte do dinheiro arrecadado nas privatizações em subsídio para incentivar as exportações. Está debaixo de fogo.
Nem nos mais delirantes momentos do protecionismo dos anos 50 se chegou a pensar em coisa semelhante.
As empresas públicas que o governo quer privatizar pertencem, racional ou irracionalmente, ao público. Usar o dinheiro arrecadado no Grande Leilão Brasil para subsidiar um setor do empresariado poderá ser a estréia de uma nova escola de pensamento econômico: o liberalismo estatal. Não funciona, mas resolve alguns probleminha$.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota. Defensor do Proer e do ministro Pedro Malan, sempre acreditou que o ervanário do programa se destinava a proteger os depositantes, e não os banqueiros. Depois de ver que os motoristas de ônibus de São Paulo vão ganhar participação nos lucros das empresas, e de saber que no ano passado o Bradesco lucrou R$ 824 milhões, está certo de que Malan fará o Promildo, dando aos depositantes uma lasca nos lucros dos bancos que lhes cobram aos clientes juros de canibais.
O idiota esteve em Belém e lá ouviu a seguinte frase do doutor Pedro Chequer, coordenador do Programa de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS, do Ministério da Saúde:
"O garimpeiro, geralmente, é como homem sem nenhum caráter, aventureiro, clandestino, violento e marginal, associado a um tipo de atividade furtiva, selvagem e anárquica."
Eremildo encantou-se com a filosofia chequeriana e passou a frase adiante. Por idiota, disse-a assim:
"O burocrata da saúde federal é um homem sem nenhum propósito, pachorrento, futriqueiro, covarde e corrupto, associado a um tipo de atividade pomposa, coreográfica e anacrônica."

A conversa do câmbio começou a ficar séria
Projeções preliminares sugerem que neste mês as importações continuaram quentes. O déficit comercial pode ficar em US$ 800 milhões, resultado muito pior que o de janeiro do ano passado. Há bancos trabalhando com a hipótese de um déficit comercial de US$ 12 bilhões para este ano.
A caciquia financeira do governo está assombrada com o déficit do ano passado. Em reuniões de trabalho, o economista Gustavo Franco, diretor do Banco Central, chegou a propor uma velocidade maior nas pequenas desvalorizações do real. Esbarrou numa corrente (dentro e fora do BC) que teme a alta de juros que uma política desse tipo traz embutida. (Franco não defendeu uma desvalorização do real. Assim como em 1995, defende ajustes sucessivos que inevitavelmente elevam os juros.)
Tratada ora como uma disputa entre facções do governo, ora como um teste da vitalidade do real, a questão do câmbio entrou neste ano com uma roupa diferente. Seja o que for o que se faça (mesmo que não se faça nada), o mais importante é que se faça direito. De pouco vale ter razão depois que a casa pega fogo, a economia se descontrola e os sábios das ekipekonomikas vão trabalhar em bancos aéreos (aqueles que funcionam no alto dos edifícios e não têm agencias nem gerentes, só sócios e amigos).
A primeira indicação de que se vem trabalhando melhor que em 1996 está no fato de Gustavo Franco não ter previsto em janeiro um céu de brigadeiro nas contas do comércio internacional. Em janeiro do ano passado ele acreditava num relativo equilíbrio. Previa uma sucessão de pequenos superávits mensais, com déficits só no último trimestre e assegurava: "Não haverá mais impactos no conjunto da balança comercial". Em maio mudou de assunto e em seguida deixou de dar importância ao problema. Enquanto isso, se produziu a maior bananeira da história, com um cacho de US$ 5,5 bilhões de déficit comercial a ser descascado.

O senador Suassuna mexeu com quem não devia
O Senado resolveu manter a sua embaixada no Rio de Janeiro, uma mordomia que custa R$ 8 milhões por ano e é imortal como o Fantasma das Selvas. Tentando destruí-la, o presidente Ernesto Geisel chegou a mandar demolir o velho prédio do Senado, no fim da avenida Rio Branco. Nada. Ela brotou num anexo do Itamaraty.
Esse Senadinho tem 40 funcionários e 25 linhas telefônicas, mas o que realmente lhe dá importância é a frota de 10 automóveis que funciona como rádio-taxi de luxo para os Senadores.
Justificando a manutenção da frota e o serviço de atendimento que ela presta aos parlamentares nos aeroportos, o Excelentíssimo Senhor Senador Ney Suassuna (PMDB-PB) deu duas informações aos contribuintes.
Numa disse que seus colegas são pessoas idosas e precisam de ajuda "para carregar a bagagem". Na outra, fulanizou a mutreta: "Como é que o Josaphat vai carregar uma mala?".
Referia-se ao Senador Josaphat Marinho, do PFL da Bahia. Suassuna, 52 anos, deve prestar mais atenção com as brincadeiras que faz com a biografia e o dinheiro dos outros. Com 81 anos de idade, Josaphat tem o prazer de informar que nunca precisou de ajuda do erário para cuidar de suas malas. Nem para enchê-las, muito menos para carregá-las. Orgulha-se de ajudar os carregadores, tirando bagagens da esteira rolante quando eles não as alcançam.
Se o senador paraibano está preocupado com as dificuldades que os idosos têm com as malas, pode abrir um negócio, o "Maleiro Suassuna". Vai ganhar dinheiro. Pode oferecer alguns dos serviços que consegue do erário. Em 1995 seu nome estava na lista de notáveis cuja bagagem não devia ser tocada na alfândega do Rio de Janeiro. Se Suassuna acha mesmo que a viúva deve pagar pelo carro dos "Senadores-no-Rio", poderia ter doado aos colegas a limusine Lincoln Continental branca com televisão e dois telefones que vendeu ao cantor brega Latino por R$ 120.000.

FRASES
Rogério Belda
(60 anos, autor do livro As Novas Bases do Insustentável, com uma coletânea de outras frases.)
"Planejamento não vinga no Brasil porque adivinhar o futuro é tipificado como crime no Código Penal."
"Critério para saber se uma organização é burocrática: verifique se desligam o aparelho de fax durante a noite."
"O consolo é que, depois de morto, você será sempre lembrado pelos registros da mala-direta."
"Um jovem antropólogo ficou admirado ao perceber que os povos ditos primitivos não tem noção do futuro. Hoje, maduro, admira-se dos povos ditos modernos não terem noção do presente."

CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS
Madame Natasha tem tanto horror a música que defende o congelamento do câmbio, por medo que alguém resolva mexer na banda. Ela socorre os inconversíveis do idioma. Concedeu uma de suas bolsas de estudo a José Luiz Conrado Vieira, ex-chefe adjunto do serviço de reserva internacionais do Banco Central, pela seguinte catedral:
"A incorreta avaliação da importância da normatividade de conjuntura, ou seja, da necessidade de respostas normativas rápidas às diferentes equações do sistema econômico significa, de certo modo, desprezar a força e a velocidade das inovações na dinâmica das relações econômicas internacionais, sintetizada, por exemplo, na globalização financeira e produtiva e seus possíveis impactos sobre o planejamento estatal e os interesses sociais."
Madame acha que ele quis dizer o seguinte:
"Quem não se adaptar ao fenômeno da globalização financeira estará cometendo um erro de avaliação."

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