São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Ballard, o profeta do presente

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Eu poderia resumir o futuro em uma palavra e essa palavra é entediante. O futuro será entediante." J.G. Ballard
J(ames) G(raham) Ballard só é um escritor de ficção científica porque não tinha outra alternativa. É ele mesmo quem explica no prefácio de "Crash!": "A ciência e a tecnologia multiplicam-se ao nosso redor. (...) Elas ditam as linguagens com as quais falamos e pensamos. Ou usamos estas linguagens ou permanecemos mudos". Para não correr o risco da mudez, portanto, Ballard apropria-se das linguagens oriundas da ciência e da tecnologia. Só que acrescenta a isso uma poética da destruição, o que o situa a anos-luz do que se convencionou categorizar, até com uma ponta de desprezo, de literatura de ficção científica, e o aproxima do surrealismo.
Vale dizer também que Ballard chama de linguagem da ciência e da tecnologia nada tem a ver, por exemplo, com viagens espaciais da ficção científica tradicional ou mesmo com os computadores pop dos escritores cyberpunk. Em vez do espaço sideral, é no espaço interior -"aquele domínio psicológico (manifesto na pintura surrealista) no qual o mundo interior da mente e o mundo exterior da realidade encontram-se e se fundem"- que se desenrola a batalha de morte entre o novo caos e a velha ordem.
Para Ballard, o tempo da ficção científica não está situado no futuro. "Eu acredito na não-existência do passado, na morte do futuro e nas possibilidades infinitas do presente", disse em uma entrevista. O século 20 já basta: "Vivemos em um mundo governado por ficções de toda a espécie -o merchandising de massa, a publicidade, a política conduzida como um ramo da propaganda, a tradução instantânea da ciência e da tecnologia em imagens populares, a crescente mistura e interpenetração de identidades no reino dos bens de consumo, a apropriação pela televisão de qualquer resposta imaginativa livre ou original em relação à experiência. Para o escritor, em particular, torna-se cada vez menos necessário inventar o conteúdo ficcional da sua obra. A ficção já está aí. A tarefa do escritor é inventar a realidade".
Toda sua obra está permeada pela obsessão de enxergar essa realidade pronta a ser inventada por detrás da ficção que se tornou o mundo. As exceções são os seus livros de memórias da Segunda Guerra, "O Império do Sol" e "A Sombra do Império", que relatam suas experiências em um campo de prisioneiros durante a ocupação japonesa na China (ele nasceu em Xangai em 1930). O best seller "O Império do Sol" virou um filme sentimentalóide nas mãos de Steven Spielberg.
Ballard desde sempre esteve ligado à ficção científica. Publicou seu primeiro conto em uma revista de ficção científica e foi editor da publicação que mudou a história no gênero na Inglaterra, "New Worlds". As visões do apocalipse apresentadas em "The Crystal World" e "The Drowned World" e "The Drought", entretanto, o tiraram da vala comum da FC.
Na "trilogia do desastre urbano" -"Crash!" (editado no Brasil pela Marco Zero), "Concrete Island" e "High-Rise"- o escritor opta por um caminho ainda mais original. O homem confunde-se com os objetos por ele criados, pela via do erotismo ("Crash!") ou da psicose ("Concrete Island"). E, por sua vez, a tecnologia, mesmo a mais cotidiana e, portanto, imperceptível -carros, estradas-, provoca a desconexão do homem com a história, a moral e as noções antigas de organização psicológica. O apocalipse agora se transforma em "autogeddon", com seu duplo sentido à toda velocidade.
Seus últimos livros se dedicam ao que se poderia chamar da tecnologia mental moderna. Em "Rushing to Paradise" (1994), até os politicamente corretos feminismo e ecologismo tornam-se técnicas perversas de destruição.
E é claro que Ballard tinha que se encontrar em algum momento com David Cronenberg. O único escritor de ficção científica que conseguiu abandonar a ingenuidade e matar sistematicamente o futuro merecia que alguém tão doente e perverso quanto ele levasse seu livro mais doente e perverso para o cinema.

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