São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997 |
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O gozo que jorra morte
ANTONIO NEGRI
Além disso, de uma certa (e de qualquer modo antiga) frequentação de Ballard, tinha tirado a idéia de que o universo de experiências extremas em que ele nos imerge fosse um universo ético. Uma ética singular, certamente, nem moralista nem comum, feita de sexo e de angústia e, ainda assim, uma ética forte, porque nela "a morte do desejo" constitui o "acidente mais aterrador". A morte do desejo é naufrágio num pútrido mar de mercadorias, na obscenidade das relações metropolitanas e telemáticas, na impotência subjetiva de produzir. Somente um uso perverso da tecnologia gera hoje as máquinas e/ou os corpos. Mas, em Ballard, esta morte pós-moderna era, pensava eu, complementada por uma tensão heróica; perplexa, mas ontologicamente criativa. Frequentemente havia imaginado, nos livros de Ballard, aquele mesmo poder de "fictions" materialistas que foi própria, mutatis mutandis, dos filósofos da Idade das Luzes. Lembra-se da estátua de Condillac que começava a viver mecanicamente, solicitada pelo perfume de uma rosa? Ou então imaginava estar revivendo, com Ballard, aquela obsessão racional que, no Marquês Divino, transforma a obscura loucura do desejo em heroísmo da liberdade. É por estas razões que nunca havia aceitado o sentido catastrófico que, de "Crash!", a leitura de Baudrillard havia sugerido: como se, "alienada de um corpo que cada vez mais parece um manufaturado pré-industrial", a nova sexualidade estivesse condenada a tornar fetiche a desolação urbana, a exultar somente com os desastres que a televisão mostra, a se identificar alternadamente na mercadoria "par excellance", o automóvel. E em seu "Crash!" -predestinada a esta morte, portanto, e não, pelo contrário, a metabolizar este destino num ato de heroísmo ético e numa metamorfose do corpo. Que decepção, que frio, ao assistir ao filme de Cronenberg. Em suas mãos a experiência limite da estética de Ballard torna-se arrebatamento; o uso perverso das tecnologias, apologia: e o experimento (tão sutil e crucial em Ballard) das transformações tecnológicas, mecânicas e perceptivas do corpo achatam-se na caricatura baudrillardiana do pós-moderno. Com efeitos cômicos. Como é possível, de fato (já apontava Martin Amis, no "The Independent"), hoje, ao redor do velho automóvel e de seus desgastados mitos, ao redor de sua velocidade tão limitada, repetir aquele erotismo radical, em que lutavam poder e liberdade, do Ballard de 1973? Não, estamos hoje no pós-fordismo e no pós-industrial, e aquele carro é obsoleto e banal. Só conseguem ser patéticos os jovens da "banlieue" parisiense que aos sábados à noite apostam corrida, na contramão, de pedágio a pedágio, nas rodovias periféricas! Era coisa bem diferente o que expressavam as túrgidas imaginações do Ballard de 1973: moviam-se na discriminação entre potência e impotência, entre poder e amor, entre uma tecnologia sofrida e um sonho de transformação do corpo. Elas agitavam numa angústia de adolescente (mas o quanto é poderosa a criança) o tema do sexo, de sua incerteza e de sua metamorfose, da imersão corporal no movimento da transformação tecnológica da vida. O tema de Ballard é o de como viver, por intermédio do sujeito e de seu heroísmo (erótico e tecnológico), uma experiência de eternidade. À pergunta "como produzir subjetividade no horizonte pós-moderno?", ele respondia como Spinoza: vocês não sabem o quão poderoso é o corpo. Pelo contrário, o filme de Cronenberg só é atento ao limite da perversão e da impotência. Nem sequer passa rente à margem heróica do sadomasoquismo. É um filme necrófilo. É arrastado por uma dúvida que gostaria de ser metafísica, e que se torna irresistível banalidade. Em algum lugar Cronenberg escreve (sobre si próprio?): "A base do horror -e em geral as dificuldades da vida- consiste no fato de que nós não compreendemos por que temos de morrer. Por que uma mente sadia tem de morrer só porque o corpo não é sadio? Parece haver algo de errado nisso". Claro, há algo de errado, algo a ser corrigido, portanto. Mas a linha de solução, em Ballard ou Cronenberg, é oposta. Como é oposta a resposta que poderia ser dada à última frase do filme, quando, entre as ferragens do último "crash", os dois amantes ainda não conseguem a relação: "Maybe the next one, darling...". Ballard responderia: "the next one" é um desejo que prevalece sobre a morte; Cronenberg, um orgasmo que jorra morte. Estas observações, contudo, poderiam parecer ociosas se não as reconduzíssemos à questão decisiva: para onde leva a revolução tecnológica que atropela os corpos? Cronenberg não tem dúvidas: aquela revolução exprime degradação em cada desdobramento. Complacência ou conversão mística? Realismo pessimista ou terrorismo imperial? Pelo contrário, no "Crash!" de Ballard, no choque com a tecnologia, lê-se o "telos" ascético de uma hibridação desesperada, mas possível. Não é neste híbrido que vivemos e trabalhamos todos os dias? Ainda assim, talvez nem mesmo a ascética heróica de Ballard seja suficiente: temos de lutar para construir uma hibridação poderosa na qual a máquina seja prótese da multidão e o eros a possibilidade de dispor dela. Tradução de Roberta Barni. Texto Anterior: O oco do fetichismo Próximo Texto: Mistérios do organismo Índice |
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