São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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O gozo que jorra morte

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que a fria analítica de Ballard fosse esteticamente mais poderosa do que as confusões psicodélicas e neoplatônicas que a cultura cyberpunk montou e remontou e nos deu de presente, de Timothy Leary a Bruce Sterling, parecia-me mais do que evidente. E que a crueldade tecnológica de Ballard fosse mais verdadeira e, portanto, mais realista do que a violência mística e o excesso metafórico dos vários William Gibson que se alastram (para não falar da impaciência da new age) também me parecia fora de questão.
Além disso, de uma certa (e de qualquer modo antiga) frequentação de Ballard, tinha tirado a idéia de que o universo de experiências extremas em que ele nos imerge fosse um universo ético. Uma ética singular, certamente, nem moralista nem comum, feita de sexo e de angústia e, ainda assim, uma ética forte, porque nela "a morte do desejo" constitui o "acidente mais aterrador".
A morte do desejo é naufrágio num pútrido mar de mercadorias, na obscenidade das relações metropolitanas e telemáticas, na impotência subjetiva de produzir. Somente um uso perverso da tecnologia gera hoje as máquinas e/ou os corpos. Mas, em Ballard, esta morte pós-moderna era, pensava eu, complementada por uma tensão heróica; perplexa, mas ontologicamente criativa. Frequentemente havia imaginado, nos livros de Ballard, aquele mesmo poder de "fictions" materialistas que foi própria, mutatis mutandis, dos filósofos da Idade das Luzes. Lembra-se da estátua de Condillac que começava a viver mecanicamente, solicitada pelo perfume de uma rosa? Ou então imaginava estar revivendo, com Ballard, aquela obsessão racional que, no Marquês Divino, transforma a obscura loucura do desejo em heroísmo da liberdade.
É por estas razões que nunca havia aceitado o sentido catastrófico que, de "Crash!", a leitura de Baudrillard havia sugerido: como se, "alienada de um corpo que cada vez mais parece um manufaturado pré-industrial", a nova sexualidade estivesse condenada a tornar fetiche a desolação urbana, a exultar somente com os desastres que a televisão mostra, a se identificar alternadamente na mercadoria "par excellance", o automóvel. E em seu "Crash!" -predestinada a esta morte, portanto, e não, pelo contrário, a metabolizar este destino num ato de heroísmo ético e numa metamorfose do corpo.
Que decepção, que frio, ao assistir ao filme de Cronenberg. Em suas mãos a experiência limite da estética de Ballard torna-se arrebatamento; o uso perverso das tecnologias, apologia: e o experimento (tão sutil e crucial em Ballard) das transformações tecnológicas, mecânicas e perceptivas do corpo achatam-se na caricatura baudrillardiana do pós-moderno. Com efeitos cômicos.
Como é possível, de fato (já apontava Martin Amis, no "The Independent"), hoje, ao redor do velho automóvel e de seus desgastados mitos, ao redor de sua velocidade tão limitada, repetir aquele erotismo radical, em que lutavam poder e liberdade, do Ballard de 1973?
Não, estamos hoje no pós-fordismo e no pós-industrial, e aquele carro é obsoleto e banal. Só conseguem ser patéticos os jovens da "banlieue" parisiense que aos sábados à noite apostam corrida, na contramão, de pedágio a pedágio, nas rodovias periféricas! Era coisa bem diferente o que expressavam as túrgidas imaginações do Ballard de 1973: moviam-se na discriminação entre potência e impotência, entre poder e amor, entre uma tecnologia sofrida e um sonho de transformação do corpo. Elas agitavam numa angústia de adolescente (mas o quanto é poderosa a criança) o tema do sexo, de sua incerteza e de sua metamorfose, da imersão corporal no movimento da transformação tecnológica da vida.
O tema de Ballard é o de como viver, por intermédio do sujeito e de seu heroísmo (erótico e tecnológico), uma experiência de eternidade. À pergunta "como produzir subjetividade no horizonte pós-moderno?", ele respondia como Spinoza: vocês não sabem o quão poderoso é o corpo. Pelo contrário, o filme de Cronenberg só é atento ao limite da perversão e da impotência. Nem sequer passa rente à margem heróica do sadomasoquismo. É um filme necrófilo. É arrastado por uma dúvida que gostaria de ser metafísica, e que se torna irresistível banalidade.
Em algum lugar Cronenberg escreve (sobre si próprio?): "A base do horror -e em geral as dificuldades da vida- consiste no fato de que nós não compreendemos por que temos de morrer. Por que uma mente sadia tem de morrer só porque o corpo não é sadio? Parece haver algo de errado nisso". Claro, há algo de errado, algo a ser corrigido, portanto. Mas a linha de solução, em Ballard ou Cronenberg, é oposta. Como é oposta a resposta que poderia ser dada à última frase do filme, quando, entre as ferragens do último "crash", os dois amantes ainda não conseguem a relação: "Maybe the next one, darling...". Ballard responderia: "the next one" é um desejo que prevalece sobre a morte; Cronenberg, um orgasmo que jorra morte.
Estas observações, contudo, poderiam parecer ociosas se não as reconduzíssemos à questão decisiva: para onde leva a revolução tecnológica que atropela os corpos? Cronenberg não tem dúvidas: aquela revolução exprime degradação em cada desdobramento. Complacência ou conversão mística? Realismo pessimista ou terrorismo imperial?
Pelo contrário, no "Crash!" de Ballard, no choque com a tecnologia, lê-se o "telos" ascético de uma hibridação desesperada, mas possível. Não é neste híbrido que vivemos e trabalhamos todos os dias? Ainda assim, talvez nem mesmo a ascética heróica de Ballard seja suficiente: temos de lutar para construir uma hibridação poderosa na qual a máquina seja prótese da multidão e o eros a possibilidade de dispor dela.

Tradução de Roberta Barni.

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