São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Mistérios do organismo

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

As núpcias entre sexualidade e racionalidade (científica ou tecnológica) com resultados suspeitos de pornografia -motor do escândalo de "Crash"- não são novidade absoluta na obra de David Cronenberg (nascido em 1943).
O interesse do diretor canadense por manifestações desviantes da sexualidade provocadas por experimentos científicos aparece desde seus primeiros filmes. "Calafrios" ("Shivers", 1975) mostra um cientista maluco que inocula parasitas em habitantes de um condomínio de luxo. As vítimas são atacadas por uma compulsão sexual que culmina numa epidemia de promiscuidade e na morte.
"Enraivecida na Fúria do Sexo" ("Rabid", de 1976) traz a deusa pornô Marilyn Chambers (de "Atrás da Porta Verde") como Rose. A personagem sofre um acidente de moto e é atendida na clínica de cirurgia plástica do dr. Keloid, onde é submetida a uma cirurgia experimental. Transforma-se em uma vampira sexual, atacando suas vítimas com uma protuberância fálica que surge sob sua axila. O título original refere-se à raiva, doença que Rose dissemina com seus ataques.
Em "Rabid", já se reconhecem uma das qualidades do cinema de Cronenberg -a capacidade de extrair beleza da abjeção. A imagem de natureza realista, limpa e ordenada, vai sendo desestabilizada por dentro, por contaminação dos conteúdos de desordem oriundos particularmente da putrefação dos corpos. O corpo, nestes filmes, é um veículo por meio do qual as forças malignas de ordem inconsciente se desencadeiam ou uma cobaia dos excessos da racionalidade que -sempre sob a forma de experimentos- produzem efeitos destrutivos incontroláveis.
Com "A Mosca" (1986) Cronenberg faz o melhor filme com essa temática que encerrou ali. Das mutações apenas corporais, ele parte em busca de conexões mais complexas, que reúnam corpo e mente numa totalidade destrutiva.
Desde o início dos anos 80, o diretor já elaborava novas formulações temáticas ao passo que depurava seu estilo visual, eliminando os excessos do gênero "gore", de espetacularização das vísceras.
Para tanto, Cronenberg explora sua predileção pelas mutações humanas numa perspectiva concentrada no psiquismo. Esta entrada no psíquico privilegia nas tramas situações como telepatia, premonições, alucinações e projeções. Ao mesmo tempo, seus filmes deixam o reino exclusivo do terror e passam para a categoria mais ampla do fantástico.
"Sua Mente Pode Destruir" (Scanners", 1980) é o filme que inaugura esta fase. Nesta versão moderna do confronto entre Caim e Abel, dois irmãos duelam com capacidades telepáticas equivalentes, capazes de fazer os cérebros dos inimigos voar pelos ares.
Nos filmes seguintes, as desordens psíquicas decorrem sob o efeito do coma em "A Hora da Zona Morta" ("The Dead Zone", 1983), da droga em "Gêmeos" ("Dead Ringers", 1988), novamente da droga e da criação literária em "Mistérios e Paixões" ("Naked Lunch", 1991) e da paixão em "M. Butterfly" (1994).
Isso não significa que Cronenberg tenha abandonado o interesse pelas transformações do corpo, apenas deixa de lado a oposição entre matéria e espírito dos primeiros filmes (e seus pares de opostos caos/ordem, sujo/limpo, sexo/moral como manifestações do supremo antagonismo vida/morte). Corpo e mente atuam juntos para o bem e para o mal.
Esta união entre matéria e espírito prossegue em "Crash" na idéia da "transformação do corpo sob o impacto da tecnologia moderna" -como explicita o personagem Vaughan no filme. Ora, esta questão já havia sido explorada por Cronenberg em "Videodrome" (1982) com resultados não menos perturbadores. Ali, ele reuniu pela primeira vez explicitamente sexualidade e tecnologia com efeitos também escandalosos -o filme foi exibido com cortes nos EUA.
"Videodrome" explora os efeitos que teria sobre o cérebro a superexposição a imagens saturadas de violência e sexo.
A emissão Videodrome -uma espécie de "snuff movie", filmes em que as personagens sofrem estupros e assassinatos verdadeiros diante das câmeras- produz um tumor cerebral que gera alucinações de conteúdo sadomasoquista.
Em uma de suas visões, o personagem Max Renn chicoteia um aparelho de TV, que se contorce de dor e prazer -uma das mais impressionantes cenas imaginadas por Cronenberg. O filme é uma visão prévia da mutação do homem em animal tecnológico, que em "Crash" alcança a perfeição.
O corpo de Max Renn desenvolve uma fenda no abdome, parecido com uma vagina. Ao significado sexual acrescenta-se um elemento maquínico -Max começa a funcionar como um videocassete, e seu cérebro, como uma cabeça magnética. O corpo-máquina de Max é um território de experimentações, passagem da potência ao ato de uma nova espécie. A ambígua cena final mostra o suicídio do personagem, que precisa destruir o corpo para dar lugar ao surgimento da "nova carne".
Em "Videodrome", sob a influência de raios catódicos, o corpo inaugura a expansão das possibilidades de prazer. É como se Cronenberg postulasse uma "revolução industrial" que fosse capaz de amplificar os usos do corpo, liberando o homem das restrições impostas pela natureza. Liberta da necessidade reprodutiva, a sexualidade pode experimentar outras combinações.
Em sua "Ética", o filósofo Spinoza escreveu: "Ninguém, na verdade, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém o que o corpo pode fazer e o que não pode fazer. Ninguém conheceu tão acuradamente a estrutura do corpo que pudesse explicar todas as suas funções". Em "Crash" Cronenberg prossegue o desafio de desvendar estes mistérios do organismo.

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