São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Atitude é 'anormal', diz psicólogo do trânsito

MAURO TAGLIAFERRI
DA REPORTAGEM LOCAL

Prepare-se para assistir a um comportamento anormal. Na visão de um psicólogo especialista em acidentes de trânsito, essa inscrição bem que poderia constar no cartaz de "Crash".
Salomão Rabinovich, diretor do Centro de Psicologia Aplicada ao Trânsito (Cepat) e presidente da Associação de Vítimas do Trânsito (Avitran), é taxativo. "Já analisei mais de 10 mil acidentes e 5.000 pessoas acidentadas. Nunca encontrei casos de prazer", afirma.
Por isso, segundo ele, é melhor tomar cuidado para "não sair embananado do cinema". Traduzindo, não sair de lá pensando que basta acertar o carro no primeiro poste para atingir um orgasmo inesquecível.
Não que o automóvel não esteja associado à idéia de prazer. A potência, a virilidade, a conquista, o status são conceitos que se relacionam -por força do marketing da indústria automobilística- às máquinas sobre rodas, incluindo aí as motocicletas.
"O carro tem uma representação sexual, está ligado ao prazer. As pessoas também praticam sexo dentro dele. Mas duvido que alguém sinta prazer num acidente. É misturar o significado, a representação do prazer, com o prazer sexual real -e de uma forma mórbida", declara Rabinovich.
Até mesmo presenciar a destruição de um automóvel pode agradar. Os Estados Unidos criaram o "derby de demolição", uma espécie de competição em que o objetivo é abalroar carros, arrebentando-os ao máximo.
"Destruir um carro é como destruir um mito. O carro representa uma fantasia forte na cultura ocidental. Ele representa poder, é capaz de se transformar numa arma, e isso fascina", diz o psicólogo.
A velocidade é outro elemento prazeroso que se pode tirar de um auto. Declarações de pilotos de competição comparando o dirigir em altas velocidades ao ato sexual não são novidade.
Só para citar exemplos brasileiros, Ayrton Senna e Nelson Piquet já falaram de orgasmo ao descrever a sensação da superação e da vitória. Emerson Fittipaldi disse que conduzir um monoposto a quase 400 km/h é "como fazer amor com uma mulher".
Fittipaldi, entretanto, não fez nenhuma menção ao prazer quando, em julho passado, destruiu seu Penske/Mercedes no muro de proteção do circuito oval de Michigan (EUA), durante uma corrida da Indy, num acidente que por pouco não o deixou tetraplégico e que ainda pode lhe custar o abandono da carreira.
"Emerson sofreu um acidente e agora está quase desistindo de tudo. É um instinto de preservação da vida muito forte. Quem está preocupado com segurança não pode ter prazer com a morte", comentou Rabinovich.
Em síntese, para ele, o prazer que se tira do carro é sempre simbólico, mesmo que se esteja em alta velocidade. "Os rachadores, por exemplo, querem desafiar a autoridade, especialmente a paterna. São inconsequentes", conta.
Para o psicólogo, não se tira prazer físico, sexual, do automóvel. E, se alguém o fizer, na opinião dele, sofre de algum desvio da sexualidade. "A pessoa sentir prazer na auto-destruição é um desvio muito forte. Quem tem esse tipo de prazer é anormal."
"Todos têm que entrar no cinema sabendo que vão presenciar um comportamento anormal. Um acidente pode te matar ou te deixar inutilizado para o resto da vida. Numa fração de segundo, vai-se uma vida em que você investiu por 40 anos", acrescenta.
Pelo menos 2.120 dessas vidas foram bruscamente interrompidas no ano passado só na região metropolitana de São Paulo, segundo dados da Polícia Militar e da Companhia de Engenharia de Tráfego.
Em 1995, houve ainda mais mortes no trânsito paulistano: 2.278.
Se o número de vítimas fatais tende a cair na cidade -a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança é aceita como explicação para o fato-, a quantidade de acidentes de carro aumenta ano após ano. Em 96, esse número chegou a, no mínimo, 195.032 ocorrências -6,7% mais que em relação a 95.
Em outras palavras, aconteceu um acidente de trânsito na cidade a cada 2,7 minutos durante todos os dias do ano que passou.
Pelas informações recolhidas no Cepat, 90% dos acidentes têm a falha humana como causa.
"O motorista brasileiro é de alto risco, despreparado, sem valores. Só se vai reverter esse quadro mexendo com a cultura. Dirigir no Brasil é considerado uma brincadeira. E não é a lei que vai alterar isso. Trata-se de moralidade pública, cidadania, responsabilidade", completa Rabinovich.
Chegar ileso à casa após a sessão de "Crash" pode ser, nessa linha, um bom começo.

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