São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Um diálogo com fantasmas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Este é um livro tão sem pretensão e tão simpático que a gente corre o risco de não dar nada por ele. Betinho tornou-se um monumento nacional, com sua campanha contra a fome, e isto tampouco ajuda "A Lista de Ailce". É como se disséssemos: "Bom, o importante é o que ele faz na campanha, não o que ele escreve".
O texto se expõe, assim, a uma recepção complacente; em vez do famoso "não li e não gostei", sugere uma outra: "já gostei e não preciso ler". Expõe-se, além disso, a leituras ultra-exigentes. O fato de Betinho ser difícil de atacar deixa-nos às vezes um pouco incomodados, e estas crônicas familiares poderiam então servir de pretexto para encontrar alguma mácula menor, literária, em sua personalidade pública.
Bom mineiro, Betinho parece saber de tudo isso, desinflando seu texto de toda pretensão literária mais evidente e evitando atrair para este livro as fáceis simpatias pessoais que o seu caso desperta.
Soropositivo, Betinho escreve aqui sobre a morte. A lista a que se refere o título é uma relação de nomes, enviada por sua prima Ailce, de todas as pessoas conhecidas de Betinho, parentes, mendigos, médicos, padres, que já morreram na sua cidade natal, Bocaiúva, no fundão de Minas Gerais. Um pouco à moda do poeta americano Edgar Lee Masters, que em 1925 compôs uma série de epitáfios em verso para as pessoas comuns de uma cidadezinha, na "Spoon River Anthology", temos assim pequenos retratos, de menos de uma página, para as pessoas mortas de Bocaiúva.
É uma conversinha atenta à mineirice, às manias de cada pessoa, aos causos, aos parentescos etc. Betinho é primo do general Figueiredo e do político mineiro por excelência, o famoso José Maria Alckmin. Este prometia a Betinho um potro de presente. O menino cobrava, Alckmin respondia que, como tinha passado um tempo, o potrinho já tinha crescido, agora era cavalo, então não podia dá-lo de presente, o garoto tinha de esperar outro aparecer.
Os nomes se sucedem: dr. Gil, o médico, Eli, o seleiro, Laura e Glória, irmãs de Eli, Raimundo, o mendigo... Um exemplo. "Seu Rodrigo, meu avô, morreu com 95 anos (...) Era esquecido a ponto de reclamar da calça sem braguilha porque vestida ao contrário, de tentar colocar o cinto como se fosse uma gravata (...), de se perder em várias circunstâncias dentro do município onde nascera, além de correr da própria sombra em noite de lua, assombrado." Fantasmas também aparecem. "Havia a mulher de cócoras que era vista no corredor escuro da casa de vovó...Não tinha olhos." Há "os loucos e os sistemáticos": "Os pobres, quando entram nos desvios da razão, são loucos, malucos, mas quando são 'de família' são sistemáticos (...) O verbo era cismar. Alguns cismavam de não sair de casa, ficavam sentados nas suas cadeiras o tempo todo, outros eram colecionadores de tudo, outros não paravam de assobiar..."
E por aí vai, num retrato ameno de costumes mineiros que já parecem antiquíssimos, embora o autor tenha nascido em 1935. A amenidade do texto faz contraponto ao tema da morte. Na leveza com que são expostas tantas variações de doenças, acidentes, suicídios -narradas como que por acaso, porque a lista é de mortos mesmo, então nada mais natural que tenham morrido-, talvez se identifique o que há de mais literário no livro.
Não é o texto, embora saboroso e delicado, mas sim a estratégia, o viés adotado pelo autor, essa forma quase casual, mas insistente, de falar na morte que dá à "Lista de Ailce" um caráter literário. Podemos dizer isto sem concessões, e ler o livro como quem ouve, numa cidadezinha perdida nos cafundós de Minas, uma pessoa assobiando no escuro, para espantar ou chamar, não se sabe, os fantasmas que estão por perto.

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