São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O testamento de um andarilho

JOSÉ MARCOS MACEDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fosse para desafogo do leitor mal-avisado, ainda renitente às inovações, fosse por medo de cavar um fosso de antipatia pessoal com o público benevolente, mas agastado pela falta de critério com que medir a ficção, certo é que a literatura de vanguarda não regateia prefácios em que expõe com zelo minucioso as linhas sobre que se erige a fábula -algo como um circunstanciado cardápio que antecede os prazeres do banquete.
"Por que estragar as obras à força de prefácios e caluniar a si mesmo por sua bandeira!", argumentava Flaubert; sob pena de virar letra morta, o vanguardismo tratou de levar água a seu próprio moinho e opor um dique aos lances de oposição. Alguns, os mais engajados, como Louis Aragon, brindado agora com a tradução de seu "O Camponês de Paris", dá-se à pachorra de, com o prefácio, no qual corre o perigo de prometer largo e dar estreito, emoldurar a narrativa acrescentando um epílogo, a que não falta o tom panfletário.
Sem prejuízo da mestria com que o autor faz o pastiche da dicção cartesiana, o apostolado é relativamente simples: proclamar os descalabros do "tolo racionalismo humano", com seu cortejo de certezas ilusórias e dogmas inveterados, e resgatar "o sentimento do maravilhoso cotidiano", um grão de sandice que age de concerto com o culto do efêmero para recriar uma "mitologia moderna", projeto aliás não de todo estranho aos românticos alemães, Friedrich Schlegel à frente.
A narrativa propriamente dita consta de dois movimentos, o que espelha a cadência binária de todo o livro e anima os capítulos "A Passagem da Ópera" e "Sentimento da Natureza no Parque Buttes-Chaumont". Evidentes, tanto no tema quanto no enfoque, são os paralelos com outras obras fundadoras do surrealismo, a "Nadja" (1928), de Breton, e "As Últimas Noites de Paris" (1928), de Soupault.
Resta notar, para além de certo ar de família comum a todas, o que confere ao "Camponês de Paris" (1926) seu selo de origem, seu timbre específico. Sob o olho que circula no seu à-vontade pela capital francesa, os objetos externos são um constante apelo. É deles que irremediavelmente se parte, ao lhes fixar a vista, para o devaneio interno do sujeito. A cada novo objeto, após regular-lhe a sintonia fina e enfocá-lo com máxima nitidez, os contornos são borrados e resvala-se para a livre associação de imagens, sob tutela do fôlego imaginativo, para só então buscar apoio em mais outro objeto, que desencadeia nova fantasia, e assim por diante.
O procedimento é louvável, pois se vale de um suporte externo para a análise individual e, com isso, evita o surradíssimo artifício simbolista de dissolver tudo quanto é exterior em estados de ânimo e complacência vazia. Passados os primeiros momentos, contudo, o jogo de báscula entre a realidade e as imagens perde em novidade e ganha certo automatismo, por maior que seja o esforço para diminuir o hiato que vai entre ambas. A construção é extremamente engenhosa, porém.
A "Passagem da Ópera", a meio caminho entre o interno e o externo, "no limite das luzes que opõem realidade exterior ao subjetivismo", encontrava-se à época sob a mira das picaretas, prestes a dar lugar ao boulevard Haussmann. Até mesmo o relato a frio de seus ambientes e dos que por eles transitam (que traz à memória o Heine da "Lutécia" e, naturalmente, o Benjamin do "Trabalho das Passagens") tem um quê de arrolamento testamentário, no qual a minúcia devotada ao presente cede passo ao olhar da recordação, que esbate os limites entre influxo exterior e elaboração interna.
No "Sentimento da Natureza no Parque Buttes-Chaumont", a descrição topográfica dos caminhos, por cuidado extremado, beira o labiríntico, convertendo um espaço aberto num beco sem saída. O saldo final, contudo, é de duas substâncias imiscíveis ou decantadas; a realidade serve de "gancho" para a imaginação, que, tão logo se vê liberta, recria o mundo como bem entende.
Num trecho do "Manifesto do Surrealismo" (1924), Breton lembra "a intratável mania que consiste em reconduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável". Aragon ruma precisamente em sentido inverso, do conhecido ao desconhecido, como se um fosse o avesso da costura do outro. Isso não desdiz o fato de "no surrealismo, a inspiração poética não ser uma visitação inexplicável, mas uma finalidade que se exerce", como afirma em seu "Tratado do Estilo", quando ainda militava nas fileiras de vanguarda.
Ora, essa ânsia de "integrar o infinito sob as aparências finitas", a busca deliberada do frêmito, acaba por esgarçar a narrativa; o vaivém constante da realidade às imagens aos poucos diminui a suficiência da imaginação, que passa a nutrir-se exclusivamente da novidade. O texto diminui de ponto e só volta a respirar e crescer de diapasão ao se retomar o relato objetivo.
A imagem, que Reverdy definiu como "aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas", retomando o célebre "encontro fortuito, numa mesa de dissecação, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva" concebido por Lautréamont, não quadra bem na extensão romanesca, embora se adapte com folga à lírica.
Apesar da solução técnica de justificar o ir e vir pelo próprio olhar andarilho do herói (que ainda por cima é um camponês de Paris) e tornar o próprio texto um caminho a ser percorrido (daí a reprodução de placas, cartazes etc.), a forma do livro se constrói a despeito da fragmentação, e não por causa dela, a exemplo do "João Miramar", de Oswald de Andrade, também do decênio de 20.
Como confessa o narrador, o mundo externo "são meus próprios limites", "um método para me alforriar de certas coações". Antes da ronda por Paris, o herói é um flâneur de seu próprio eu; dele poderiam ser as palavras de Henri Michaux: "Escrevo para me percorrer".

Texto Anterior: Um diálogo com fantasmas
Próximo Texto: BORGES; VIAGEM; NOSTRADAMUS; MAGIA; BOLSA; GARCÍA LORCA; REVISTA 1; REVISTA 2
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.