São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Hegel poeta

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por isso, pela "noção ligeiramente arcaica de primazia da palavra falada" que incide em sua (de Hegel) práxis linguística, o filósofo e dialeta da Escola de Frankfurt dá certa razão a seu colega Horkheimer, quando este, numa aparente boutade, afirma que, para compreender o "hegelianês", não basta conhecer o alemão, mas é necessário ainda remontar ao dialeto suábio de Hegel ("os dialetos" -registra Adorno- "são repositórios de gestos, dos quais se desacostumaram os 'idiomas principais'±").
Gadamer, por seu turno, falando do virtuosismo de Hegel com respeito ao trato dos conceitos, radica-o no modo como o filósofo (para quem a linguagem "não era um auto-rasurante e temporário instrumento do pensamento" ou seu mero "molde transparente") usa a língua alemã para desenvolvê-los; Gadamer aponta a dificuldade translatícia da escritura filosófica hegeliana nas principais línguas de cultura, assinalando que traduções de sua obra só começaram a aparecer neste século e seriam apenas -opina o autor de "Verdade e Método"- bem-sucedidas a meias, no que respeita à transmissão do pensamento do filósofo, quando o leitor estrangeiro não tenha condições de "recorrer ao alemão" ("Hegel's Dialectic - Five Hermeneutical Studies", versão para o inglês de P. Christopher Smith, 1976).
Adorno estabelece um paralelo entre a linguagem do filósofo de Iena e a do poeta de Diotima, Hoelderlin, seu colega e amigo de juventude, reconhecendo, no escrever de ambos, uma "qualidade musical". No caso do filósofo, seria necessário, ao lê-lo, acompanhar com o "ouvido especulativo" os pensamentos, como se estes fossem "notas de uma partitura musical". A música "dialética", ou seja, "a música de tipo beethoveniano", que impõe uma audição "multidimensional, para frente e para trás ao mesmo tempo", ofereceria um "análogon" da reflexão hegeliana. Não por acaso, face à luz que nos vem dessas observações adornianas, é possível colher na "Filosofia do Espírito" asserções à primeira vista paradoxais, como aquela, célebre, sobre a verdade (que, pelo menos na aparência, como que antecipa o "gaio saber" dionisíaco e dançarinamente zaratustriano de Nietzsche): "Das Wahre ist so der bacchantische Taumel, an dem kein Glied nicht trunken ist; und weil jedes, indem es sich absondert, ebenso unmittelbar (sich) auflõst, ist er ebenso die durchsichtige und einfache Ruhe". Ou, na versão brasileira de Henrique Cláudio de Lima Vaz ("Os Pensadores", Abril Editora, 1974): "O verdadeiro é, assim, o delírio báquico no qual não há membro que não esteja embriagado, e porque cada membro, na medida em que se separa, imediatamente se dissolve, é igualmente o repouso translúcido e simples". Ou, ainda, como eu reproponho o texto do filósofo, submetendo-o a um recorte poemático:
a verdade
a verdade é o
delírio báquico:
nela nenhum elo
escapa à embriaguez
e como cada
um deles
ao se-
parar-se i-
mediatamente já se dis-
solve
ela é
igualmente a
paz
translúcida e
singela
Assim, aquele que se adentre na "obscura filosofia hegeliana" (nesses termos -lembra Derrida, "Glas", 1981, referia-se Freud ao pensador "escuro") terá acesso ao "círculo dionisíaco", no qual poderíamos designar, como "primeiro momento", o "Taumel", "o delírio báquico, a embriaguez desbordante" (nosso Guimarães Rosa certamente recorreria ao vernáculo "temulência"); no curso dele, o deus se faz presente: "Diônisos deve então transitar para seu contrário, apaziguar-se para existir, e não se deixar beber e consumir pela 'horda das mulheres exaltadas'±".
No "terceiro momento", o da "arte abstrata, a religião que aí se inscreve é, já, a fase mais abstrata do momento anterior", "através de seu silogismo, um processo de linguagem apressura-se ainda mais no revezar o remanescente" ("Glas", cit.). Ao que se poderia ajuntar, com Adorno, no comentário que faz a esse "movimento apreendido como quietude", que o pensamento de Hegel na "Fenomenologia" já era o que Benjamin chamaria "dialética em estado estacionário, comparável ao que o olho percebe nas gotas d'água que começam a pulular sob o microscópio".
Mas o caráter de "antitextos" dos escritos de Hegel acentua-se em passagens mais rarefeitas -e quiçá ainda mais "obscuras". Hegel, como Licofronte, o helenístico autor do monólo dramático "Alexandra"; como Mallarmé, "l'obscur", merece também o apelativo de "skoteinós" (refere Adorno), vocábulo grego que se poderia traduzir por "escuro", "ininteligível", "tenebroso". E o autor da "Dialética Negativa" cita, em consonância, aquela passagem hegeliana sobre o enigmático Heráclito (por sinal -uma curiosidade- contemporâneo síncrono de Confúcio, o pragmático moralista chinês) em que o pensador alemão da dialética proclama, a respeito do protodialeta de Éfeso: "A obscuridade dessa filosofia reside principalmente no fato de nela expressar-se um pensamento profundo, de natureza especulativa, e este é sempre difícil e obscuro para o entendimento (enquanto a matemática, esta carece inteiramente de dificuldade)...".
Outro que também sublinha a relação Heráclito-Hegel é Gadamer; a propósito dos "enunciados crípticos" do grego, Hegel entendia que se tratava de "múltiplas variações" em torno do "princípio da unidade especulativa", asseverando, preocupado sempre com a "totalidade das determinações do pensamento", que não havia deixado de incorporar a sua "Lógica" nenhuma dessas variações do recôndito homem de Éfeso (cf. "Hegel und Heidegger", em inglês na coletânea "Hegel's Dialectic", cit.).
Os textos a que me refiro são aqueles, portadores de alta voltagem sintática, que poderiam ser enquadrados na noção poundiana de "logopéia" ("dança do intelecto entre as palavras"), equivalente, segundo tenho proposto, à "poesia da gramática" de Jakobson; textos que trabalham no nível da estrutura linguística que Hjelmslev denomina "forma do conteúdo". Neles, o torneio dialético hegeliano parece antecipar os jogos de linguagem de Gertrude Stein ou os esqueléticos sintagmas de Beckett ou, ainda, para mencionar um autor alemão contemporâneo, os exercícios textuais do recém-falecido Helmuth Heissenbüttel. Sirvam de exemplos estes recortes poemáticos que me permiti praticar na "Fenomenologia":
dialética do agora - 1
o agora
que é noite
é pre-
(sus-
penso)
-servado
ou seja
é tratado
como aquilo
pelo que
ele se nos
dá:
como um ex-
-sistente
mas ele se nos
mostra antes muito
mais como um
não-ex-
-sistente

o agora
ele mesmo
por certo
se conserva
mas como um
tal que não é
noite:
no que também
se conserva
por igual quanto
ao dia
que agora
ele é
como um
tal que
não é dia ou
como um
negativo em
geral

este
-que se conserva-
agora
não é
portanto um
i-mediato
mas sim um
inter-mediado
pois ele é
a modo de um
que se mantém e se conserva
por determinação
travessa
ou seja:
porque um outro
-o dia e a noite-
não é

eis aí como
ele é
sempre ainda
-tão simplesmente
como antes-
agora:
e nesta
simplicitude
equivalentemente
in-diferente
ao que
ao pé dele
se põe em jogo:
assim como
noite e dia
nenhum deles
é seu ser
tampouco
ele é
noite e dia:
por este seu
ser-outro
ele não se deixa
afetar:

uma simplicitude
tal e qual
que é
mediante a
negação
-não sendo este
nem aquele-
um não-isso
equivalentemente
in-diferente
a ser isto ou
aquilo
nós o nomeamos um
universal: o
universal que é
pois
o vero da
sensível
certeza

Continua à pág. 5-12

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