São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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Hegel Poeta

HAROLDO DE CAMPOS
DE JÁ NÃO MAIS SER.

o agora que ora se nos mostra
é um ter-sido
e nisso está sua verdade:
ele não tem a verdade do que está
/sendo.
mas é verdade isso
mas o ter-sido não fica sendo
ele não é
e nosso afazer era o ser.
Confira-se, quando possível, o original alemão (ao qual pretendo ter sido fidelíssimo -hiperfiel- em som, conexão e sentido) e a versão (eficiente) pelo tradutor brasileiro que venho trazendo à colação: "O que é indicado é o agora, este agora, agora. Mas enquanto é indicado já deixou de ser. O agora que é é um outro, não o que foi indicado, e vemos que o agora é justamente isto: enquanto é, já não ser mais. O agora, tal como nos é indicado, é um agora que já foi. Esta é a sua verdade e ele não tem a verdade do ser. É contudo verdade que ele já foi. Mas o que foi não é, de fato, uma essência. O agora não é, e, no entanto, a questão se colocava em torno do ser".
Não por mera casualidade, destituída de pertinência, Max Bense, filósofo da ciência e da estética, semioticista e poeta, presta um tributo de admiração a Hegel, glosando em estilo "staccato" o "agorapoema" inscrito no texto do filósofo do Espírito Absoluto, e desenvolvendo o tema do "Jetzt" (agora) a modo de "ars combinatoria: "... dieses jetzt, erst dieses jetzt, nur dieses jetzt ist jetzt" ("Bestandteile des Vorübers"/ "Partes Integrantes do Que Já Foi", 1961).
Com efeito, Hegel ensaiou exprimir-se em poesia. Para Lukács ("Der Junge Hegel" /"The Young Hegel", 1966; 1975), do ponto de vista da literatura alemã, de sua "idade de ouro", seria necessário sublinhar as conexões entre Hegel, Hoelderlin, Heine e, acima de tudo, o Goethe do "Fausto". Refere, então, o pensador húngaro que Hegel enviou de Berna o poema "Eleusis" ao seu colega de estudos juvenis, o poeta de Diotima. Nele se pode vislumbrar, por um lado, a persistência, àquela altura (cerca de 1796), do utópico ideal republicano, assumido por ambos (por Hegel, na juventude, sob o impacto da Revolução Francesa e, mais tarde, abandonado em prol da tentativa de reconciliação monárquico-religiosa); por outro, a partir do título iniciático, a comum nostalgia do paradigma grego, segundo Lukács similar em Hegel ao "tom básico da poesia hoelderliniana" (Hegel, também ressalta Gadamer, pode ser assemelhado a Hoelderlin no que toca à "renovação do entendimento clássico da arte, no propósito de conferir estabilidade e substância à excessiva interioridade da época moderna"; Hegel, conformemente a essa preocupação, ter-se-ia inclinado perante a "flexibilidade linguística do pensamento grego, em relação àquilo que era mais central para a sua própria reflexão: suas específicas raízes no idioma nativo, a sabedoria das sentenças e jogos de palavras peculiares à sua língua e sobretudo o poder de expressão nela contido, no espírito de Lutero, do misticismo germânico e da herança 'pietista' de sua Suábia natal".
Um vestígio, talvez, dessa insinuante presença grega em Hegel, parece ser a influência desta -da bipolar ambiguidade homérica- sobre sua concepção de "Gehalt" ("conteúdo-valor configurado", à diferença do mero "conteúdo"/"Inhalt", como se, no caso do termo "Gehalt", a palavra "Gestalt"/"forma, configuração, figura", nele se houvesse projetado; de fato, etimologicamente, esse termo, "Gehalt", tem a ver com a idéia de "preservar algo", "mantê-lo em cativeiro", qual se no "conteúdo" já se lesse indelevelmente a noção correlata de "continente").
Uma concepção de "Gehalt" -a hegeliana- que bate, como logo se verá, com a de Roman Jakobson, para quem a "ambiguidade" é algo ínsito à mecânica poética (como se lê no seu célebre ensaio sobre as "funções da linguagem"); uma concepção, ademais, que explica, de certo modo, a predileção do filósofo por aquelas palavras-oxímoro que o idioma alemão oferece, como, por exemplo "Aufhebung" (do verbo "aufheben", que significa tanto "abolir" como "preservar", "manter em suspenso" -SUS-PREENDER, por que não?); ou, ainda, "Aufgabe" (do verbo "aufgeben", "dar um encargo" e também "renunciar a algo", ou seja, na forma substantiva, "incumbência/desincumbência", "missão/demissão", "dom/abandono"). Confira-se, na "Phãnomenologie" (ed. Suhrkamp), as passagens das págs. 84, 94, 150, 476; págs. 170, 447). Leia-se o trecho a que aludo:
"O 'conteúdo-valor (configurado)'/'Gehalt' é o mesmo, mas, como Homero, a respeito de certas coisas, dizia que elas têm dois nomes, um na língua dos deuses, outro na língua dos homens afanosos, assim também, para cada 'configuração-de-conteúdo-valor' ('Gehalt'/também teor), há duas linguagens: uma do sentimento ('Gefühl'), da representação ('Vorstellung') e da inteligibilidade ('des verstãndigen') dos pensamentos aninhados em categorias finitas e abstrações unilaterais ('einseitigen'); a outra, do conceito concreto ('des konkreten Begriffs')"; cf. "Enziklopãdie der philosophischen Wissenschaften", 1830, Felix Meiner Verlag, 1969 (prefácio de 1827 à segunda edição).
Concluo esta digressão "filopoetosófica" com a bela aproximação que Gérard Lebrun ("La Patience du Concept", Gallimard, 1972) faz entre Hegel e o hegeliano Mallarmé (que não teria conhecido o pensamento do filósofo senão por "interpostas pessoas"; J. Rancière, "Mallarmé: la Politique de la Sirène", 1996). Depois de admitir que se poderia vislumbrar na "Fenomenologia" "uma andadura de epopéia da consciência", Lebrun detecta o "gosto de morte" que ressuma do colapso das "figuras da consciência", do "apaziguamento sem melancolia que se eleva das obras convertidas em vestígios".
Esse sabor mortuário, lutuoso (sem melancolia?), essa "soberania da memoração", Mallarmé a teria herdado como leitmotiv do filósofo do "Espírito Absoluto". E, para não dizer (pace Lebrun) que tudo isso como que acaba pairando num horizonte saturnino, começarei por lembrar, ainda apoiado em Rancière, que à observação de Lebrun se poderia acrescentar, a modo de ressalva moduladora, a constatação de que o Mestre de Valvins via como algo "distante" a possibilidade da "bela conciliação" ("Versõhnung") da "consciência de si, reconhecendo no Estado sua vontade substancial, na religião sua essencialidade ideal e na ciência sua unidade com ambos", assumida conclusivamente (idealisticamente) pelo último Hegel, o das "Grundlinien der Philosophie des Rechts", 1921); a seguir, na tentativa de aditar ao distanciamento irônico mallarmaico um toque de futurizável "utopia concreta" (Bloch), terminarei por recorrer ao instigante ensaio de Jean Hyppolite sobre o Poema-Constelação, ápice da obra de Mallarmé ("Le Coup de Dés de Mallarmé et le Message"; cf. minha apresentação e tradução em Isaac Epstein, org., "Cibernética e Comunicação", Cultrix/Edusp, 1973), em que o acurado tradutor e estudioso da "Fenomenologia" imagina ver, no lance extremo do Dante francês da modernidade, "a Lógica de Hegel, transformada na discussão de si própria, inseparável de sua existência e, todavia, empenhada em refutar, ela própria, o acaso".

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