São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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A profunda estrutura da violência

LUIZA NAGIB ELUF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Violência contra a mulher existe no mundo todo, inclusive no Brasil. Nada se compara, porém, à crueldade e à repressão praticadas contra as mulheres habitantes dos países islâmicos da Ásia e da África. Com a repercussão dada à invasão do Afeganistão pelas milícias Taleban, veio à tona, mais uma vez, o horror que estas culturas impõem ao gênero feminino.
As atrocidades são cometidas a pretexto de "proteger" as mulheres, mas têm pouco a ver com as recomendações do Corão, que jamais pretendeu tratar as mulheres desta forma. Benazir Buto, primeira-ministra do Paquistão por duas vezes e profunda conhecedora do islamismo, sempre afirmou que os ensinamentos de Maomé não inferiorizam a mulher. As interpretações distorcidas é que geraram o estado de injustiça.
Incrível e desanimador constatar que a comunidade internacional tenha reagido de forma tão amena e despreocupada com relação a tamanha opressão. Tanto os governos quanto a Organização das Nações Unidas (ONU) têm sido bem mais firmes e atuantes em outros casos de violações de direitos humanos. As atrocidades cometidas na Bósnia, apenas para citar um exemplo recente, ensejaram a criação de um tribunal internacional para responsabilizar matadores e torturadores criminosos de guerra. A eliminação sistemática de judeus durante a Segunda Guerra Mundial foi rigorosamente apurada, com a colaboração de todos os países envolvidos. A ONU, atualmente, envia tropas e outros tipos de ajuda (médica, alimentar etc.) aos refugiados de Ruanda. Providências importantes e, sem dúvida, merecedoras de aplauso.
Ocorre, porém, que, quando a violência é contra a mulher, o enfoque é outro. Por tratar-se de uma opressão de certa forma generalizada, variando apenas de intensidade, dependendo do país, causa pouca indignação. Até os mais reconhecidos e universais padrões de igualdade e justiça social são ignorados ou diluídos quando aplicados a mulheres.
A violência de gênero não pode ser percebida apenas como manifestação da brutalidade masculina, como um conflito homem-mulher. Esse entendimento impede a percepção de fatores mais profundos que promovem a violência dentro de uma sociedade. As brutalidades contra a mulher são, na verdade, reflexos da violência perpetrada coletivamente por membros de uma sociedade estruturada na violência. Controlar as agressões de gênero significa controlar a violência de forma geral.
O recrudescimento das "leis penais islâmicas" pelo Estado levou alguns países, como por exemplo o Paquistão, a um retrocesso tremendo e à desconsideração absoluta dos direitos humanos, consagrados na Conferência Mundial de Direitos Humanos da ONU, realizada em Viena, em 1993, e na Conferência Mundial da Mulher, realizada em Pequim, em 1995. O devido processo legal, garantia indispensável a um julgamento justo, não vigora. Mulheres são condenadas sumariamente, bastando a existência de suspeitas para que sofram severas punições, inclusive a morte. A palavra de um homem não pode ser contestada por uma mulher. Assim, uma suspeita marital pode ser transformada em verdade incontestável sem maiores dificuldades. Uma mulher acusada de adultério pelo marido é apedrejada até a morte; quando acusada de "fornicação", sendo solteira, recebe cem chicotadas em público. Se o pai quiser, pode matá-la.
Hoje, o mundo esboça alguma reação, mas durante muito tempo se manteve silente.
A imprensa atribuiu certa prioridade à divulgação dos aspectos mais grotescos da opressão feminina por ocasião das invasões das milícias Taleban no Afeganistão, as organizações não-governamentais protestaram, porém nenhuma medida de efetivo impacto foi tomada pelos países democráticos. A situação das mulheres nas culturas islâmicas continua quase a mesma. É preciso aproveitar o ensejo desta recente invasão, da qual resultou a imposição de costumes selvagens para as populações femininas dominadas, para repensar as estratégias que o mundo deve adotar no enfrentamento do problema. É claro que a comunidade internacional não pode ignorar tais fatos e deve reagir organizadamente a eles.
As milícias Taleban, por serem extremamente radicais e fundamentalistas, absolutamente intolerantes com relação às mulheres, impuseram regras que colocam milhares de vidas em risco, sem nenhum constrangimento.
A população feminina dos locais ocupados no Afeganistão foi proibida de frequentar escolas (de todos os níveis), de trabalhar fora de casa, de exercer qualquer profissão. Circular pelas ruas também tornou-se quase impossível, mesmo estando a mulher inteiramente coberta pelo tenebroso véu negro que não permite ficar à mostra nenhuma parte do corpo, inclusive o rosto. Mulheres encontram-se apartadas do convívio social em um sistema mais rigoroso do que qualquer presídio.
Vigora, ainda, uma lei que proíbe as enfermas de serem tratadas por médicos homens. Desde uma simples consulta até os casos mais graves de periclitação de vida só podem ser atendidos por médicas. Se, por outro lado, também mulheres médicas estão terminantemente proibidas de trabalhar, vemos instituída uma política de extermínio, baseada na completa desassistência à saúde feminina.
Pergunta-se: quais as providências efetivamente tomadas pelos países desenvolvidos e democráticos da comunidade internacional com relação a tantas violações? O que fez o Brasil, que tem uma Constituição Federal determinando a absoluta igualdade de gênero? Onde está e para que serve a Comissão de Direitos Humanos da ONU? Onde estão os países que tanto clamaram contra a escravidão? Condenam a escravidão racial, mas não a de gênero?
Uma pequena pressão internacional foi feita, é preciso reconhecer, mas em uma intensidade muitíssimo aquém da necessária. Mulheres condenadas à ignorância, ao silêncio, à doença física e mental, à clausura, ao trabalho doméstico brutal, à procriação não planejada e desassistida não podem significar tão pouca coisa. Isso tudo acrescido da mutilação genital, consistente na amputação sistemática do clitóris de meninas de tenra idade, com métodos e rituais de crueldade indescritíveis.
Nenhuma crença religiosa, nenhuma tradição cultural, nenhum código ou lei podem justificar o que milhões de mulheres sofrem, na Ásia e na África, por serem mulheres em nações islâmicas. Na verdade, não se trata de princípios religiosos, pois o Corão, em momento algum, chega a esses extremos. São, isso sim, regras tribais resultantes de um longo período de ignorância em que viveram certas populações, assim mantidas com a conivência de países de Primeiro Mundo diante de interesses econômicos. Consta que as milícias Taleban foram treinadas por americanos, no tempo da Guerra Fria, para resistir à dominação soviética. Tudo, porém, em prejuízo das mulheres.
É hora de a comunidade internacional rever sua postura e tomar a defesa das populações femininas subjugadas. Suas condições de subsistência são as piores possíveis e é preciso enfrentar os estragos que a dominação de gênero produziu em determinadas culturas.
O grande desafio das políticas de direitos humanos para a próxima década será erradicar a escravidão feminina e garantir dignidade às relações de gênero.

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