São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 1997
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A estatização do corpo humano!

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

O Congresso nacional aprovou um projeto de lei segundo o qual -a menos que você registre em cartório uma declaração em contrário- os órgãos de seu corpo, após sua morte, poderão ser livremente usados para fins de transplante. Você concorda com isso?
A questão é complexa. A medicina avança a passos largos. Hoje, os médicos conseguem salvar, prolongar e melhorar a vida mediante transplantes de coração, rins, fígado, pâncreas, córnea etc. Mas isso criou um novo problema: a demanda por órgãos é muito maior do que a oferta.
O problema é mundial. Nos Estados Unidos os médicos fazem cerca de 2.400 transplantes de coração por ano e a demanda ultrapassa 4.000. No caso dos rins, 30 mil pessoas disputam 10 mil órgãos disponíveis.
O potencial de doadores é enorme. Naquele país morrem 2 milhões de pessoas anualmente -100 mil em acidentes. No Brasil são 1 milhão e 110 mil, respectivamente. Portanto, o número de órgãos potencialmente disponível é imenso -mesmo depois da triagem que tais cirurgias requerem.
Quase todos os países estão procurando formas de aumentar a oferta de órgãos. Em alguns Estados americanos, as pessoas autorizam na sua carteira de motorista a retirada de órgãos em caso de acidentes.
O professor Gary S. Becker, Prêmio Nobel em Economia, sugere oferecer estímulos para as pessoas, em vida, fazerem autorizações para uso de seus órgãos depois da morte ("How uncle Sam could ease the organ shortage?", "Business Week", 20/1/97).
No Brasil, o Congresso Nacional quis ir mais longe ao pretender passar aos médicos o direito de arrancar do seu corpo o que julgarem necessário.
Será que os médicos aceitariam fazer isso? Essa lei, se aprovada, acabaria com um dos direitos mais fundamentais dos cidadãos -o direito sobre o seu próprio corpo.
Aumentar a oferta de órgãos é necessário e urgente. Mas daí a passar por cima da vontade das pessoas vai uma distância planetária. Isso é um desrespeito ao ser humano, no momento em que se fala tanto em direitos humanos.
Colocado dessa forma, é um ato de pilhagem. Pode ser uma pilhagem legal -mas não deixa de ser pilhagem.
O presidente Fernando Henrique Cardoso tem poucos dias para aprovar ou vetar o projeto aprovado.
Quem não gostaria de deixar autorizado o uso do seu corpo para ajudar uma criança, um chefe de família, uma pessoa lúcida -enfim, um seu semelhante?
Para tanto, seria necessária uma lei para (1) sustentar campanhas educativas engenhosas; (2) gerar estímulos criativos e atraentes; e (3) implantar um sistema desburocratizado para as pessoas autorizarem o uso dos seus órgãos após a morte.
Um veto a esse projeto é uma oportunidade para o seu aperfeiçoamento.

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