São Paulo, segunda-feira, 27 de janeiro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O transplante e a vacina obrigatória

DARCY RIBEIRO

Dirigi uma carta ao presidente Fernando Henrique Cardoso pedindo que não vete a lei dos transplantes aprovada pelo Senado. Chamo a atenção dele e de todos vocês que esperam órgãos para transplante ou têm amigos e parentes dependendo disso para se salvarem. Peço que escrevam, vocês também, suas cartas ao presidente.
"Senhor presidente,
"A lei que regulamenta os transplantes, aprovada pelo Senado, significa a sobrevida de muitos milhares de pessoas anualmente. Ela tão-só dá ao Brasil condições práticas de realizar transplantes tal como existem no mundo inteiro.
"Só aqui prevalece a loucura de exigir que o doador procure um cartório e declare oficialmente ali que, depois da morte, seu coração, seu fígado, seus rins e suas córneas possam ser utilizados para salvar vidas e devolver a visão. Cerca de 100 mil pessoas morrem anualmente na onda de violência e no tráfico desenfreado. Elas poderiam oferecer mais de 10 mil órgãos de transplantes. São compelidas, porém, a ser enterradas para apodrecerem inúteis por força de uma legislação desumana.
"O projeto de minha autoria -muito melhorado pelo senador Lúcio Alcântara- inverte a situação, exigindo que vá ao cartório quem não queira dar seus órgãos, quem não queira salvar a vida de ninguém. Nosso procedimento legislativo foi aprovar o projeto original do Senado, recusando as emendas da Câmara dos Deputados que mantinham a legalidade vigente. A constitucionalidade desse procedimento é tão clara quanto o procedimento oposto, da lei assassina vigente até agora no Brasil.
"Os que defendem a legislação vigente alegam que a nova lei poderia estimular a comercialização de órgãos. Não é verdade. Primeiro porque a escassez da oferta atual é que poderia levar a esses crimes. Segundo porque, pela primeira vez, a lei estabelece fortes penas inalienáveis para quem incidir nessas práticas. Outra alegação é que os hospitais não têm corpos médicos preparados para aplicar essa lei.
É verdade. E não terão enquanto essa lei não exista.
"Há grupos de opinião que têm boas razões de caráter religioso para se oporem aos transplantes, porque querem preservar seus corpos para a reencarnação. Mas esta é gente ilustrada, rica, mais capaz de procurar cartório para assegurar seus direitos do que o popular que seria chamado a proporcionar a maior oferta de órgãos.
"Recorde-se, presidente, da luta contra a vacina obrigatória de Oswaldo Cruz que, mantida, salvou tantíssimas vidas. Trata-se da mesma questão. As camadas mais retrógradas não querem mudar nada, indiferentes ao sofrimento alheio, ao sacrifício de vidas e à condenação à cegueira de outras tantas.
"Nosso projeto, que teve 43 votos contra 21, tem o apoio das milhares de famílias que vivem no desespero de esperar um órgão, desenganados de que o alcancem, antes de morrer.
"São elas que pedem a você, além desse seu velho amigo, que sancione a lei."

Texto Anterior: A era dos fulanos
Próximo Texto: A recandidatura de FHC
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.