São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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As estratégias do cortesão

ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os livros de Peter Burke analisam o exercício e a cena do poder político, desde a gênese da cultura moderna. Em "A Fabricação do Rei" (1), ele discute, ao mesmo tempo, os prismas da propaganda estatal, instauradora de um mito, o de Luís 14, e o controle da vida pública. A lisonja e o comportamento dos cortesãos já aparecem, naquele escrito, como estratégicos para a exegese de hábitos e modas (tanto nas roupas quanto nas idéias), adquiridos por uma aristocracia domada no "zoológico de Versalhes" (Diderot). A linguagem aduladora explica em parte o vínculo erótico entre o "rei Sol" e seus vassalos.
Burke retoma este veio da fala perversa, fértil em sugestões desde a Antiguidade até nossos dias. Lembremos os tratados de Plutarco (em especial, o "De Garrulitate", ainda não traduzido para o português, e "Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo", (2) ), as farpas de Erasmo contra a tirania erguida sobre os aduladores, as sátiras contra a língua solta, no século 18 (3), as ironias de Hegel, na "Fenomenologia do Espírito" (4), sobre a garrulice ao redor do trono, os filosofemas de Heidegger ("Ser e Tempo") contra a sociedade curiosa e tagarela, a descrição dos mesmos hábitos na "Crítica da Razão Dialética".
Ao escrever sobre o monarca absoluto e o clima de mistificação e falatório das cortes, Peter Burke pesquisava a língua cortês para dela encontrar um conceito eficaz. Foi assim que ele publicou livros tematizando a arte da conversa (5) e, agora, "O Cortesão".
As pretensões de Burke são modestas na aparência: desdobrar, para os que já conhecem o livro de Castiglione, as múltiplas leituras que definiram sua figura na modernidade. Simultaneamente, trata-se de introduzir os demais nos meandros daquele monumento cultural do Ocidente. No plano metódico, o autor desenvolve sugestões trazidas por H.R. Jauss, Gadamer e outros, quanto à hermenêutica literária, somada à história da recepção textual. Com acuidade, ele recusa o imaginário das "influências", armando uma rede sutil de conceitos entre o invento das escritas e a sua "difusão". Para isso, sua pesquisa abrangeu, ao longo dos séculos 16 e 17, uma prosografia de 328 leitores possíveis de "O Cortesão", seguindo ramificações coletivas em bibliotecas públicas e particulares.
Antes de examinar as "fortunas" do escrito, Burke recorda, rapidamente, o núcleo que o define, a doutrina sobre o "decorum". Em poucas linhas são reunidos os poemas homéricos, as teses aristotélicas, as lições de Xenofonte, as prescrições ciceronianas sobre o correto comportamento dos aristocratas. Estes devem ser livres, inclusive frente à escravidão das regras que limitam a fala, os gestos, a escrita. Mas, ao mesmo tempo, eles são obrigados a conviver com as normas. Torna-se obrigatório o disfarce: parecer descuidado, mas seguir linhas estritas de comportamento.
Este paradoxo encontra-se resumido na retórica: os excelentes oradores uniriam, em seus discursos, uma diligência com superfície distraída ("negligentia diligens"). Trata-se da "espontaneidade simulada". No final da Idade Média, esse ideário, após ter passado pela eclesiástica "disciplina" (um padre não deve andar muito rápido nem muito lento, não deve grunhir palavrões nem viver nas tavernas...), recebe o nome genérico de "cortesia", unido à discrição. No indivíduo cortês residem a franqueza da fala, a generosidade, o polimento. O "decorum" é a medida certa da civilidade. Burke não cita, mas bom exemplo dessa doutrina encontra-se num gramático inglês do século 16. Se a duquesa, diz ele, apresenta-se numa cerimônia mais bem vestida do que a rainha, ela é indecorosa. Se usa roupas inferiores à sua dignidade, também exibe-se como indecorosa. O decoro é uma arte difícil de relações e cálculos. O mesmo, diz o gramático, ocorre na escrita. Se o autor usa imagens em demasia, ele menospreza o intelecto dos leitores. Se não as usa, fere as suas faculdades sensíveis (6).
O livro de Castiglione une, de modo singular e feliz, a forma e o conteúdo desse imaginário decoroso. Trata-se de um diálogo bem-humorado, erudito sem pedantismo, ágil e valente. Nele, as vozes expressam opiniões diversas. Ninguém é expulso da sala por dissentir... Num cochilo, Burke enuncia que o diálogo ciceroniano, talvez um modelo para "O Cortesão", segue a forma platônica. É permitido duvidar dessa assertiva. Os textos de Cicero empalidecem, quando aproximados dos platônicos. Mais feliz é o nexo estabelecido entre a escrita de Castiglione e os diálogos de Luciano, cuja recepção favorável, no Renascimento, era quase unânime. Recordemos o "Momus" de Alberti, o "Pantagruel", o "Elogio da Loucura", para ficar apenas com alguns dos mais estratégicos geradores da admiração moderna pela inteligência elegante na conversa. De qualquer modo, Burke demonstra de modo certeiro o traço que une o modelo do "vir civilis" e as prescrições para o trato social.
O texto de "O Cortesão" é múltiplo na sua unidade: ele congrega vários locutores e pensamentos, o que ressalta a liberdade e a polidez. A técnica da escrita também varia: o diálogo foi retocado por Castiglione em diferentes momentos de sua vida. Ele foi retorcido pela Contra-Reforma e pela burguesia hipócrita do século 19. Apesar disso, como diz Burke, "O Cortesão" define-se como "obra aberta, a que não só é ambígua, mas o é propositalmente, à maneira de uma peça". Se procurarmos as bases para teses modernas sobre o teatro e o artista, como no diderotiano "O Paradoxo do Comediante", encontraremos no ideal transfigurado por Castiglione o grande fio condutor: ocultar o artifício sob aparência espontânea.
Quando encontramos, hoje, uma pessoa polida em excesso, agindo de modo a deixar evidentes as regras da "boa educação", dizemos que ela é amaneirada. O mesmo para o pedante que não consegue dizer duas frases sem bibliografia. Falta-lhes a graça cortesã, cujo nome italiano é "sprezzatura". Deste modo, na arte da vida e nas belas artes, o termo foi assumido com o seu par incômodo, a maneira. Há o maneirismo dos atos, e outros maneirismos, na pintura, na escrita, na música. Quando o esforço na produção do trabalho, ou as regras gerais que o determinam, aparece acima de tudo, temos o reino da maneira, irmã perversa da arte.
Isso já levou Erasmo, em sua ampliação de Horacio ("Odes", 4, 2, 28-32), ao nexo arcaico entre escritor e abelha: o texto deve, como no céu estrelado em noite clara, deixar que a vista capte cada astro singular. Se um vestido, continuava Erasmo, cobre-se de jóias, sem discrição, todos os enfeites enternecem. Exibir técnicas refinadas para adorno do texto, sem cautela, é cair no ridículo. Como o inseto que produz mel, deve-se deixar ao próprio movimento da escrita o seu crédito. Nem tudo, nos mestres da pena e da política, é regra e convenção.
Entre as marcas do verdadeiro aristocrata está o manejo ágil das normas de comportamento e a liberdade na fala. Um cortesão diz o que é apropriado, mas também enuncia o verdadeiro. Segundo Burke, "o cortesão de Castiglione era um indivíduo autônomo, aconselhado a falar francamente com seu príncipe". Dizer o que se pensa, dissimulando as próprias idiossincrasias. Este é o programa oposto ao seguido pelo filistinismo romântico, posterior à Revolução Francesa. Sob os governos contra-revolucionários, muito se tagarelou sobre as misérias do próprio eu, dissimulando-se qualquer crítica ao poder. Com o amestramento das cortes modernas e o absolutismo, o cavalheiro passa a seguir as regras, sem livre palavra.
Mesmo nas traduções d' "O Cortesão" isto se evidencia: na Espanha, recorda Peter Burke, desaparecem os termos "cittadino" e "civile". Onde não existe vida cívica, e na sala onde o "cortejo" se limita à bajulação do rei, inexistem significados para o ser livre, porque o significante foi abolido. A falta de liberdade, que esmaeceu o brilho de "O Cortesão", era política e religiosa. A Igreja, com autoritarismo maior do que o exigido pelos reis, mutilou o escrito. Este foi posto no "Index" dos livros proibidos, em 1590, e ali ficou, para vergonha dos católicos, até 1966. Exceção? Apenas o volume editado em 1584, com expurgos. Os totalitários do século 20, que aprenderam a queimar livros, "selecionando" trechos dos grande pensadores, têm antepassados...
"As Fortunas d' 'O Cortesão' " é um livro excelente. Ele permite entender a gênese de várias éticas que se entrecruzam na política, nas artes, na filosofia moderna. Nele se descreve um tempo em que a liberdade aristocrática ainda não era uma sombra e a liberdade democrática residia apenas em páginas reprimidas, fruto de revoluções como a dos camponeses alemães. A burguesia, entre estas duas éticas, serviu-se das aparências nobres, mas sem brilho ou grandeza. Das boas idéias, no texto de Burke, uma das mais bonitas é o símile entre as sortes do escrito e os próprios retratos de Castiglione, pintado por vários artistas ao longo do tempo. A figura do escritor modifica-se, como a recepção de seu trabalho.
Obra aberta, ou relacionamento tenso entre as formas do espírito, é abstração vazia separar, nas grandes produções da mente humana, o momento inicial e suas inúmeras facetas. Trata-se, para todo analista ou leitor culto, e não amaneirado, de seguir, com os olhos e com a sensibilidade, as "tinturas e reflexos" dos escritos eminentes, entre os quais se instalou o livro de Castiglione, suscitando o elegante comentário de Peter Burke.
No Brasil, terra onde "cortesão" significa apenas o ofício de bajular os poderosos, sem nenhuma graça ou "sprezzatura", este livro é imprescindível. As maneiras polidas indicam respeito pela alteridade, requisito mínimo do trato realmente democrático. Num Estado civil, os governantes nunca desqualificam os opositores com chistes de gosto duvidoso ("a crítica burra" e outras jóias do mesmo jaez). Estas falas recebem o aplauso apenas dos aduladores. Excelente é saber que a Editora Martins Fontes publica o próprio texto de "O Cortesão". Pelo que já se pode avaliar, o texto nacional espelha o brilho dos originais. Isto significa que o Brasil, titubeante, se aproxima do mundo civilizado?

Notas:
1. Rio, Jorge Zahar Editores, 1992;
2. Traduzido por Isis Borges B. da Fonseca em "Como Tirar Proveito de Seus Inimigos", SP, Martins Fontes, 1997;
3. Cf. Daniel, Georges, "Fatalité du Secret et Fatalité du Bavardage au 18e. Siècle - La Marquise de Merteuil et Jean-François Rameau". Paris, Nizet, 1966;
4. O famoso "Heroísmo da Adulação". Cf. "Werke in Wanzig Banden", 3, página 378 e seguintes. Tradução J. Hyppolite, Paris, Aubier, tomo 2, págs. 71 e seguintes;
5. "A Arte da Conversação", SP, Ed. da Unesp, 1995;
6. Um dos livros mais importantes sobre o tema, na cultura moderna, foi escrito por Rosemund Tuve. Infelizmente não encontramos referências explícitas a ele no trabalho de Peter Burke. Cf. "Elizabethan and Metaphysical Imagery - Renaissance Poetic and 20th Century Critic", The University of Chicago Press, 1961.

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