São Paulo, domingo, 5 de outubro de 1997
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Uma chance de competitividade

CARLOS H. DE BRITO CRUZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A competitividade da indústria e dos serviços tornou-se uma das preocupações centrais nos dias de hoje porque está intrinsecamente associada à capacidade da economia de preservar, gerar ou minimizar a redução de postos de trabalho. Neste final de século, a busca da competitividade levou as empresas a se reorganizarem, alterando seus processos de produção para formas mais eficientes.
Qualidade total, ISO 9000, reengenharia tornaram-se elementos corriqueiros do vocabulário das empresas. Entretanto há um outro componente essencial na busca por competitividade: é a capacidade de criar produtos melhores, de criar tecnologia, de saber fazer coisas e de saber aprender a fazer coisas novas e melhores. Este segundo desafio ainda não está sendo atacado pelas empresas brasileiras, mas estas começam a perceber que é inútil ter o melhor processo de produção sem ter domínio sobre o que se produz, ou como se produz.
Ao mesmo tempo em que qualidade total e ISO 9000 são termos do jargão da empresa brasileira, desenvolvimento tecnológico, ciência e tecnologia parecem ainda ser termos estranhos, alheios ao dia-a-dia da empresa.
A importância dada à ciência e tecnologia pode ser avaliada a partir da experiência de países desenvolvidos, que foram capazes de construir parques industriais e de serviços fortemente competitivos e eficientes, geradores de PIB e de desenvolvimento social e econômico para seus cidadãos. A melhor maneira de examinarmos a importância devotada a um tema é analisarmos quanto dinheiro se paga para isso e quem paga. Mais ou menos como aprendemos nos filmes policiais ou nas páginas políticas nacionais e internacionais: "Follow the money!".
Vejamos, então, quem paga e quem faz o desenvolvimento científico e tecnológico dos países do Primeiro Mundo. O primeiro indício da importância do assunto vem do simples fato que nesses países essa informação é mantida atualizada constantemente, como um dos indicadores importantes do desenvolvimento da sociedade. No Brasil, ao contrário, só muito recentemente dados relacionados a investimentos em ciência e tecnologia passaram a ser divulgados e levantados oficialmente.
O quadro nesta página mostra quem paga pela atividade de ciência e tecnologia nos Estados Unidos e quem realiza estas atividades. Divide-se a atividade em três categorias: desenvolvimento tecnológico de um produto ou serviço visando adequá-lo à produção seriada e ao consumo em larga escala; pesquisa aplicada, que é a etapa anterior ao desenvolvimento, quando se utiliza resultados de pesquisa básica para testar uma idéia inovadora que pode resultar num produto; e a pesquisa básica, na qual se busca conhecimento sobre as leis fundamentais da natureza ou da sociedade.
As principais conclusões que podemos tirar dos dados mostrados no quadro ao lado são:
a) O desenvolvimento tecnológico e a pesquisa aplicada são custeados pelo governo e pela indústria, com ligeiro predomínio desta: isso faz sentido, já que a indústria precisa de pesquisa aplicada e de desenvolvimento tecnológico para ganhar competitividade, e ao governo americano interessa manter e avançar a competitividade da indústria americana.
b) Quem realiza as atividades de desenvolvimento e de pesquisa aplicada é essencialmente a indústria, por ampla margem (mais de 80% do desenvolvimento, quase 70% da pesquisa aplicada): também faz sentido, pois sendo o principal pagador, a indústria investe os recursos em si mesma, criando suas próprias instalações de pesquisa e desenvolvimento. Na década de 80, nos legendários Laboratórios Bell da AT&T trabalhavam mais cientistas com título de PhD do que existiam em todo o Brasil, registrando uma patente nova por dia.
c) A principal contribuição da universidade se dá, também aqui por larga margem, na realização de pesquisa básica: novamente parece óbvio, pois a universidade tem como missão principal formar pessoal altamente qualificado, e a atividade de busca do conhecimento original é instrumento ideal para estimular e exercitar a atividade intelectual dos estudantes e assim formá-los melhor.
d) A atividade de pesquisa básica é custeada principalmente pelo governo, mesmo num país como os Estados Unidos, campeão do discurso privatista: esta conclusão não é tão óbvia, e poderá até surpreender alguns privatistas mais realistas do que o rei, que existem no Brasil. Mas faz sentido: os Estados Unidos aprenderam, ao longo de sua história como nação dona de uma economia poderosa, que o investimento em ciência básica é necessário tanto para formar os melhores cientistas e engenheiros como também como celeiro de idéias que garantam a existência e a qualidade das atividades em pesquisas aplicadas e desenvolvimento.
Notem que a contribuição da indústria é também a maior parcela do total investido em ciência e tecnologia, pois é bem sabido que as atividades mais caras são justamente aquelas em que a indústria contribui mais: desenvolvimento e pesquisa aplicada. Do total gasto em ciência e tecnológica nos Estados Unidos em 1994, 52% foram pagos pela indústria, e 42% pelo governo federal.
Dados análogos para outros países podem ser obtidos no volume "Science and Technology in the World - 1996", publicado pela Unesco. Ali verifica-se que em todos os países industrializados a parte paga pela indústria é em geral maior ou comparável à parcela paga pelo governo, com a exceção do Japão, onde a indústria paga quase o quádruplo do que o governo, situação que se repete em alguns outros países denominados "tigres asiáticos".
No Brasil, verifica-se o contrário: dois terços do esforço de pesquisa e desenvolvimento são bancados pelo governo. Resumo da ópera: em países em que a economia enfrenta dificuldades de competitividade, como é o caso em toda a América Latina, o investimento da indústria em pesquisa e desenvolvimento é reduzido ou nulo, sendo quase toda esta atividade suportada pelo governo. Naqueles que têm economias prósperas e em crescimento, como é o caso da Coréia do Sul, por exemplo, é a indústria, e não o governo, quem faz o maior investimento em ciência e tecnologia.
O exposto acima derruba alguns mitos instalados no Brasil: o principal é a hipótese de que o desenvolvimento tecnológico brasileiro será feito pelas universidades brasileiras. Isto não acontece em nenhum lugar do mundo. O que sim ocorre em todo o mundo é que os profissionais bem qualificados formados nas universidades vão criar o desenvolvimento tecnológico nacional trabalhando para indústrias que investem em e precisam de tecnologia.
Outro mito brasileiro, tão real quanto o saci-pererê, é o de que a atividade de pesquisa na universidade deva ser financiada pela indústria, e não pelo governo: no mundo inteiro é o governo que banca a pesquisa acadêmica, e, nos Estados Unidos, dos US$ 21 bilhões investidos em pesquisa nas universidades americanas em 1994, somente US$ 1,4 bilhão foi pago pela indústria, um percentual menor do que 7%, conforme mostrado no quadro nesta página. O mesmo quadro mostra os valores individualizados para algumas das mais conhecidas universidades americanas.
Notem bem que este dado não quer dizer que a tão falada "interação universidade-empresa" não deva ser buscada: diz apenas que há limites para esse tipo de atividade, determinados pela lógica própria de funcionamento da universidade e da empresa, e diz também que o eventual apoio da empresa à pesquisa acadêmica não será nunca um substitutivo para o apoio do governo. Mesmo assim, a interação universidade-empresa é importante, por contribuir à formação de melhores profissionais, mais preparados para lidarem com os problemas do mundo real.
Ao mesmo tempo, os dados permitem que objetivamente entendamos a existência de um problema e o tratemos: como induzir a indústria a fazer mais pesquisa e desenvolvimento no Brasil? Uma grande dificuldade aqui parece ter sido a cultura de protecionismo e, portanto, o baixo valor dado à competitividade e à criatividade na empresa brasileira. Mais do que isso, as origens estrangeiras da maior parte da indústria instalada no país induzem a um comportamento de busca de inovação na matriz, em vez de desenvolvê-la aqui.
Some-se a isso um ambiente econômico com taxas de juros enormes e instabilidade constante, o que certamente desfavorece o investimento em atividades que remuneram a longo e médio prazo. Mas algumas novidades importantes têm acontecido. O governo federal tem tomado iniciativas a respeito, tendo criado, há alguns anos, leis de incentivo fiscal que estimularam algumas empresas e que começam a dar seus primeiros frutos. No âmbito estadual, a Fapesp (Faculdade de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) acaba de aprovar a criação de um programa especial para o apoio à inovação tecnológica na pequena empresa.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o Sbir (Small Business Innovative Research) é legislação federal, obrigando todas as agências de governo a contratarem um percentual de sua atividade de pesquisa e desenvolvimento com pequenas empresas. Mesmo numa economia aberta e movida primordialmente pelo mercado, como a americana, a intervenção do Estado é necessária, e efetivamente acontece, para garantir os objetivos de desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do país.
No Brasil, neste momento de transição para uma economia mais aberta, é preciso que maneiras inteligentes para a preservação do interesse nacional sejam criadas e implantadas. Com a extinção do monopólio estatal nas telecomunicações, e da próxima privatização do sistema, quais as salvaguardas que irão garantir que a capacidade nacional de desenvolvimento de tecnologia no setor de telecomunicações continue existindo? O Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD) da Telebrás, em Campinas, é um dos grandes exemplos nacionais de empresa investindo em tecnologia e obtendo retorno por isso.
Após o lançamento da tecnologia Trópico RA de centrais telefônicas, desenvolvida pelo CPqD em 1990, o custo do equipamento para o sistema Telebrás instalar novas centrais telefônicas caiu de US$ 1.200 para US$ 200 por terminal, para cada um dos 1,2 milhão de terminais instalados, resultando numa economia para o sistema Telebrás de mais de US$ 1 bilhão. Ao mesmo tempo em que empresas instaladas no país e usando a tecnologia desenvolvida pela Telebrás produziram mais terminais, gerando mais emprego e mais renda.
No Brasil de hoje, mais do que nunca é preciso que elaboremos e implementemos estímulos que convençam as empresas instaladas no país de que pesquisa e desenvolvimento podem significar ganhos reais. Somente assim os profissionais formados nas nossas universidades excelentes poderão atacar, na empresa, o desafio de transformar ciência em PIB, para que o Brasil possa ter uma chance de competitividade neste final de século.

Mais informações sobre o tema acima estão em http://www.unicamp.br/prp/ finpesqwww/index.htm

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