São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 1997
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De hipócritas e cínicos

ANTONIO DELFIM NETTO

O aumento do nosso déficit comercial com os EUA levanta problemas interessantes que deveriam merecer atenção mais cuidadosa em lugar da crítica emocional a que estamos assistindo. É claro que os EUA defendem os interesses de seus trabalhadores e empresários, de forma que seria esperar muito que eles cuidassem, também, dos nossos. Afinal, foi George Washington quem disse (em 1796!): "Não pode haver maior erro do que esperar favores entre nações. Essa é uma ilusão que a experiência cura".
Não é preciso muita capacidade analítica para entender o que está acontecendo com o saldo comercial Brasil-EUA. Os EUA obviamente tentam proteger os seus produtores de suco de laranja, de sapatos, de têxteis, de aço, de açúcar etc. Parece difícil provar que desde 1994 essa proteção tenha crescido ou que nos últimos três anos tenha havido uma discriminação particular aos produtos brasileiros. Não é, portanto, uma boa técnica criticar a hipocrisia americana de pedir "livre comércio para os outros e fechar o seu mercado". Eles não mudaram muito desde 1994!
Devem-se procurar outras causas. Entre 1990 e 1994 as exportações brasileiras para os EUA cresceram à taxa de 2,2% ao ano. A partir de 1994 elas estagnaram e em 1997 devem cair. Já as importações totais dos EUA passaram de US$ 500 bilhões para US$ 860 bilhões entre 1990 e 1997, com um ritmo de 8% ao ano. Significa que a partir de 1990, mas principalmente entre 1994 e 1997, entregamos um mercado em rápida expansão para nossos concorrentes.
Isso não sugere nada? É evidente que a sobrevalorização do real tem muito a ver com esse resultado, mas disso não se fala. Nem os exportadores a mencionam. Todos estão acovardados pelo pensamento hegemônico que o espetacular sucesso do Plano Real no combate à inflação e os fantásticos gastos de publicidade do governo federal impuseram à sociedade brasileira.
Para os que não acreditam na eficácia da taxa de câmbio e pensam que ela só produz inflação, talvez seja bom mostrar o que está acontecendo com o déficit comercial americano em consequência da valorização do dólar este ano. Nos primeiros sete meses de 1997, o déficit foi de US$ 66 bilhões (sendo US$ 31 bilhões com Japão, US$ 11 bilhões com Alemanha e apenas US$ 2 bilhões com os antigos Tigres Asiáticos). Uma boa parte da explicação da origem do déficit está ligada às flutuações cambiais diferenciadas entre os vários países.
É difícil separar o que é efeito da taxa de câmbio do que é efeito do crescimento desigual entre os vários países, mas o comportamento do déficit e a sua distribuição geográfica (16% a mais com o Japão e 20% a mais com a Alemanha) mostram que os diferenciais de valorização certamente tiveram alguma influência no resultado.
Seria muito bom que antes de envolver-se numa disputa verbal inconsequente o Brasil analisasse com cuidado a perversa interação entre os efeitos da redução aforçurada das tarifas, a sobrevalorização cambial, as dificuldades de crédito e a "escorchante" taxa de juros interna exigida para sustentar o câmbio valorizado. É muito provável que a crítica à hipócrita política americana deva continuar, mas que nosso cinismo deva diminuir.

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