São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Precisamos ser menos arrogantes e mais humildes'

JAIRO BOUER
DO ENVIADO ESPECIAL

Estive nos três últimos grandes congressos de Aids. Do otimismo de Vancouver (Canadá, julho de 96), passando pelas reticências de Birmingham (Inglaterra, novembro de 96), chegamos, em Hamburgo (Alemanha), a uma dimensão mais real do que deve ser o tratamento da doença nos próximos anos.
O coquetel ainda é, sem sombra de dúvida, a maior revolução na história do tratamento da epidemia. As pessoas vivem melhor, sofrem menos internações, afastam infecções oportunistas e morrem menos. Alguns centros apontam redução da mortalidade por Aids da ordem de 50%.
É certo que uma parte dos pacientes fica "resistente" ao tratamento, uma outra não consegue tolerar os efeitos colaterais e o imenso número de pílulas que deve ser tomado e, ainda, que é muito pouco provável que o coquetel consiga, sozinho, erradicar todos os vírus que estão "escondidos" no corpo. Mesmo assim, todo o progresso que se fez nos últimos anos é considerável.
Uma dose de decepção com reação aos novos resultados apresentados por David Ho é natural. Afinal, quem é que não gostaria que um punhado de drogas pudesse curar a doença que mais assusta o homem nesses últimos 17 anos? Quem é que não se entusiasmou quando Ho -sem dúvida, um dos mais brilhantes pesquisadores da atualidade e um dos maiores conhecedores da dinâmica do HIV- anunciou que conseguiu "varrer" o vírus do sangue de pacientes recentemente infectados?
Boa parte dos especialistas assinou embaixo dos achados de Ho. Outros, mais cautelosos, pediam tempo e métodos mais sensíveis para checar os resultados.
Ho talvez tenha se empolgado ao supor que um modelo matemático pudesse dar conta de um dos vírus mais "engenhosos" e mutantes já vistos. Um princípio básico já dizia que na medicina, como muitas vezes na vida, não existe sempre e não existe nunca.
Em Birmingham, há quase um ano, ao fim da conferência de Ho, um senhor (possivelmente um "calejado" infectologista) levantou e fez o seguinte comentário: "Eu não entendo nada de matemática e das equações que o senhor apresenta. A única coisa que sei é que se um único vírus sobreviver, esse modelo não vai valer nada". Ao que Ho respondeu: "É verdade".
Durante sua última apresentação, em meio a gráficos mostrando pacientes com cargas virais indetectáveis no sangue, sêmen e líquor (líquido que banha o sistema nervoso central), Ho mostrou slides reveladores. No meio de um mar de linfócitos (células de defesa) saudáveis e livres do HIV, despontavam, aqui e ali, iluminados por uma técnica especial de fluorescência, alguns vírus habilmente "escondidos" no interior de uma célula.
Com drogas que só atuam quando o vírus se manifesta (começa a se replicar), fica difícil dar cabo desses HIVs "adormecidos". E aí, só com técnicas combinadas (vacinas terapêuticas e reforços imunológicos) que forcem o vírus a se multiplicar, podemos tentar mexer no resíduo de 0,1% do vírus.
Hamburgo não foi uma derrota. O coquetel ainda é uma grande estratégia de tratamento. Mas as pesquisas devem continuar. Precisamos de drogas mais potentes e de novas terapias.
Mais importantes que novas drogas talvez seja uma vacina capaz de salvar mais de 90% da população infectada, que vive miseravelmente na África, Ásia e na América Latina e nunca vai ter acesso ao coquetel.
Talvez a postura de Ho durante esse último congresso -menos arrogante e mais humilde- reflita um modo com que devamos encarar o vírus HIV daqui pra frente. (JAIRO BOUER)

Texto Anterior: As armas contra o HIV
Próximo Texto: TVs educativas são tema de congresso; Ribeirão tem déficit de placas de trânsito; Estado vai anunciar o resultado de licitação; Cresce notificação de sarampo em São José
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.