São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
'Precisamos ser menos arrogantes e mais humildes'
JAIRO BOUER
O coquetel ainda é, sem sombra de dúvida, a maior revolução na história do tratamento da epidemia. As pessoas vivem melhor, sofrem menos internações, afastam infecções oportunistas e morrem menos. Alguns centros apontam redução da mortalidade por Aids da ordem de 50%. É certo que uma parte dos pacientes fica "resistente" ao tratamento, uma outra não consegue tolerar os efeitos colaterais e o imenso número de pílulas que deve ser tomado e, ainda, que é muito pouco provável que o coquetel consiga, sozinho, erradicar todos os vírus que estão "escondidos" no corpo. Mesmo assim, todo o progresso que se fez nos últimos anos é considerável. Uma dose de decepção com reação aos novos resultados apresentados por David Ho é natural. Afinal, quem é que não gostaria que um punhado de drogas pudesse curar a doença que mais assusta o homem nesses últimos 17 anos? Quem é que não se entusiasmou quando Ho -sem dúvida, um dos mais brilhantes pesquisadores da atualidade e um dos maiores conhecedores da dinâmica do HIV- anunciou que conseguiu "varrer" o vírus do sangue de pacientes recentemente infectados? Boa parte dos especialistas assinou embaixo dos achados de Ho. Outros, mais cautelosos, pediam tempo e métodos mais sensíveis para checar os resultados. Ho talvez tenha se empolgado ao supor que um modelo matemático pudesse dar conta de um dos vírus mais "engenhosos" e mutantes já vistos. Um princípio básico já dizia que na medicina, como muitas vezes na vida, não existe sempre e não existe nunca. Em Birmingham, há quase um ano, ao fim da conferência de Ho, um senhor (possivelmente um "calejado" infectologista) levantou e fez o seguinte comentário: "Eu não entendo nada de matemática e das equações que o senhor apresenta. A única coisa que sei é que se um único vírus sobreviver, esse modelo não vai valer nada". Ao que Ho respondeu: "É verdade". Durante sua última apresentação, em meio a gráficos mostrando pacientes com cargas virais indetectáveis no sangue, sêmen e líquor (líquido que banha o sistema nervoso central), Ho mostrou slides reveladores. No meio de um mar de linfócitos (células de defesa) saudáveis e livres do HIV, despontavam, aqui e ali, iluminados por uma técnica especial de fluorescência, alguns vírus habilmente "escondidos" no interior de uma célula. Com drogas que só atuam quando o vírus se manifesta (começa a se replicar), fica difícil dar cabo desses HIVs "adormecidos". E aí, só com técnicas combinadas (vacinas terapêuticas e reforços imunológicos) que forcem o vírus a se multiplicar, podemos tentar mexer no resíduo de 0,1% do vírus. Hamburgo não foi uma derrota. O coquetel ainda é uma grande estratégia de tratamento. Mas as pesquisas devem continuar. Precisamos de drogas mais potentes e de novas terapias. Mais importantes que novas drogas talvez seja uma vacina capaz de salvar mais de 90% da população infectada, que vive miseravelmente na África, Ásia e na América Latina e nunca vai ter acesso ao coquetel. Talvez a postura de Ho durante esse último congresso -menos arrogante e mais humilde- reflita um modo com que devamos encarar o vírus HIV daqui pra frente. (JAIRO BOUER) Texto Anterior: As armas contra o HIV Próximo Texto: TVs educativas são tema de congresso; Ribeirão tem déficit de placas de trânsito; Estado vai anunciar o resultado de licitação; Cresce notificação de sarampo em São José Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |