São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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NÓS OU EU

IAN MCEWAN

o começo é simples de apontar. Nós estávamos tomando sol, embaixo de um carvalho, parcialmente protegidos de um vento forte, em rajadas. Eu estava ajoelhado, com um saca-rolhas na mão, e a Clarissa estava me passando uma garrafa -um Daumas Gassac 1987. Foi esse o momento, foi esse o alfinete espetado no mapa do tempo: eu estava estendendo a mão e ao sentir na palma o toque do gargalo frio e do lacre de metal preto escutamos o grito de um homem. Nós dois nos viramos para o outro lado do campo e percebemos o perigo. Ato contínuo, eu corria na sua direção. A transformação foi absoluta: não me lembro de ter deixado cair o saca-rolhas, ou de me levantar, ou de tomar uma decisão, ou de escutar as recomendações de cautela da Clarissa. Que estupidez, sair em disparada para me meter nessa história e seus labirintos, deixando para trás nossa felicidade na relva fresca da primavera em torno ao carvalho. Ouviu-se o grito mais uma vez e outro, de criança, enfraquecido pelo vento que rugia nas árvores altas ao longo da cerca viva. Corri mais rápido. E lá, subitamente, de pontos diversos do campo, quatro outros homens convergiam para a cena, correndo como eu.
Eu nos vejo de uma altura de cerca de 70 metros, pelos olhos de um gavião que havíamos visto antes, planando, voando em círculos e mergulhando no tumulto das cor rentes: cinco homens correndo em silêncio rumo ao centro de um campo de cem acres. Eu vinha do sudoeste, com o vento nas costas. A uns 200 metros à minha esquerda, dois homens corriam lado a lado. Eram trabalhadores, que consertavam uma cerca no limite sul do campo, onde passa a estrada. A mesma distância separava esses dois do único motorizado, John Logan, cujo carro estava na encosta da relva, com a porta, ou portas, escancarada. Sabendo o que eu sei agora, é estranho evocar a figura de Jed Parry, exatamente à minha frente, surgindo de uma linha de faias no canto extremo do campo, a uns 250 metros, correndo contra o vento. Para o gavião, Parry e eu éramos duas formas minúsculas, nossas camisas brancas brilhando contra o verde, correndo um em direção ao outro como namorados, em plena inocência da dor que esse enredo nos traria. Ainda faltavam alguns minutos para o encontro que ia nos tirar dos eixos, sua enormidade disfarçada para nós não apenas pela barreira do tempo, mas pelo colosso no centro do campo, que nos atraía com a força de uma razão terrível, na proporção de uma magnitude fabulosa para a insignificante aflição humana na base.
O que a Clarissa estava fazendo? Ela disse que caminhou rápido até o centro do campo. Não sei como resistiu ao instinto de correr. Na hora, mesmo -do evento que estou prestes a descrever, a queda- ela já tinha quase nos alcançado e estava bem posicionada como observadora, livre de participação, livre das cordas e dos gritos e de nossa ausência fatal de cooperação. O que eu descrevo está influenciado também pelo que ela viu, pelo que nos dissemos no período imediato e obsessivo de reconsiderações: o "aftermath", como se diz em inglês, "consequências", mas também "segunda colheita", termo apropriado para o que se passou num campo à espera do primeiro corte de verão. O "aftermath", a segunda colheita, o crescimento estimulado por aquele primeiro corte de maio.
Eu estou me contendo, segurando a informação. Estou me alongando no momento anterior, porque nesse instante ainda havia outros desfechos possíveis; a convergência de seis figuras num espaço verde plano é de uma geometria consoladora, da perspectiva do gavião, a superfície limitada e cognoscível de uma mesa de bilhar. As condições iniciais, a força e a direção da força definem todos os rumos subsequentes, todos os ângulos de colisão e retorno, e o fulgor da luz no alto banha o campo, o feltro verde e todos os corpos em movimento de uma claridade tranquilizadora. Enquanto convergíamos, acho que estávamos em estado de graça matemática. Se eu me alongo sobre nossa disposição, nossas distâncias relativas e os pontos cardeais é porque, no que toca a esses acontecimentos, essa foi a última vez que entendi, seja o que for, com clareza.
Estávamos correndo na direção do quê? Não penso que qualquer um de nós soubesse inteiramente. Mas superficialmente a resposta é um balão. Não o espaço assim chamado que fica em torno à fala ou pensamento de um personagem de revista em quadrinhos ou, por analogia, o outro tipo, movido a mero ar. Era um enorme balão de hélio, aquele gás fundamental, forjado a partir de hidrogênio na fornalha nuclear das estrelas, o primeiro passo no caminho da geração de multiplicidade e variedade da matéria no universo, incluindo nós mesmos e todos os nossos pensamentos.
Estávamos correndo na direção da catástrofe, que era ela mesma uma espécie de fornalha, em cujo calor identidades e destinos se curvariam em novos formatos. Na base do balão ficava um cesto, dentro do qual estava um garoto, e ao lado do cesto, agarrado a uma corda, um homem precisando de ajuda.
Mesmo sem o balão o dia teria deixado sua marca na memória, embora do modo mais prazeroso, pois era o reencontro depois de uma separação de seis semanas, a maior que Clarissa e eu já tínhamos vivido, em nossos sete anos. A caminho do aeroporto, eu fizera um desvio por Covent Garden e encontrara um lugar semilegal para estacionar, exatamente em frente ao Carluccio's. Entrando lá, juntei coisas para um piquenique, cuja peça de resistência era uma grande bola de "mozzarella", que a balconista pescou de dentro de uma vasilha de barro com uma pinça de madeira. Também comprei azeitonas pretas, salada mista e "focaccia". Depois fui pela Long Acre, com pressa, até a Bertram Rota's apanhar o presente de aniversário da Clarissa. Exceto o apartamento e o nosso carro, esse era o objeto individual mais caro que eu jamais havia comprado. A raridade do livrinho parecia exalar um calor que eu era capaz de sentir através do embrulho grosso de papel marrom, à medida que caminhava de volta pela rua.
Quarenta minutos mais tarde, eu examinava os monitores à procura de informações, no terminal de chegada. O vôo de Boston acabara de pousar e eu imaginei que teria uma espera de meia hora. Se um dia alguém quisesse uma prova da tese de Darwin, de que as muitas expressões de emoção nos seres humanos são de caráter universal e geneticamente inscritas, bastariam alguns minutos em frente aos portões de saída do terminal quatro em Heathrow. Vi a mesma alegria, o mesmo sorriso incontrolável nas faces de uma grande matriarca nigeriana, uma vovó escocesa de lábios finos e um pálido e correto homem de negócios japonês, no instante em que, empurrando seus carrinhos de bagagem, reconheciam alguma face em meio à aglomeração de gente na sala de espera. A observação da variedade humana pode ser uma fonte de prazer, mas a invariabilidade também. Fiquei escutando o mesmo suspiro numa nota descendente, muitas vezes misturada a um nome, quando duas pessoas avançavam uma na direção da outra, para se abraçarem. Era uma segunda maior, uma terça menor, ou algo entre as duas? Pa-pa! Yolan-da! Ho-bi! Nz-e! Também havia uma nota ascendente, cantarolada em voz baixa em frente ao rosto solene e cauteloso dos bebês por pais há muito ausentes, ou avós, aduladores, implorando uma resposta imediata de amor. Han-nah? Tom-ee? Deixa eu entrar!
A variedade ficava por conta dos dramas particulares: um pai com o filho adolescente, turcos talvez, ficaram parados num longo abraço silencioso, perdoando um ao outro, ou em luto por alguma perda, indiferentes à confusão dos carrinhos ao redor; duas gêmeas idênticas, por volta dos 50 anos, cumprimentaram-se com evidente desprezo, só encostando as mãos e beijando o ar; um menininho americano, erguido aos ombros de um pai que ele não reconhecia, berrou para ser posto de novo no chão, provocando um acesso de raiva na mãe exausta.
Mas a maior parte eram sorrisos e abraços e em 35 minutos eu presenciei mais de 50 finais felizes de teatro, cada um com a aparência de ser um pouco menos bem encenado do que o anterior, até que comecei a me sentir emocionalmente esgotado e a suspeitar de que até as crianças estavam sendo insinceras. Já estava me perguntando até que ponto agora eu seria convincente ao cumprimentar a Clarissa quando ela me deu um tapinha no ombro, depois de ter passado pela multidão sem me ver e ter dado a volta pelo outro lado. Meu distanciamento se dissipou imediatamente e eu gritei seu nome, como todo mundo...

Continua à pág. 5-9

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