São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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NÓS OU EU

IAN MCEWAN

O vento saltou livre, a âncora voou num jato de terra e balão e cesto subiram três metros no ar. O menino foi jogado para trás e saiu de vista

Menos de uma hora depois, tínhamos estacionado junto a uma trilha que passa pelos bosques de faias em Chiltern Hills, perto de Christmas Common. Enquanto a Clarissa trocava os sapatos, eu enchia uma mochila com o nosso piquenique. Partimos de braços dados, ainda exultantes com o nosso reencontro; o que havia de familiar nela -o tamanho e consistência da mão, o calor e tranquilidade da voz, a pele clara de celta e os olhos verdes- também era uma novidade, resplandecente de uma outra luz, que me fazia relembrar nossos primeiros encontros e os meses que passamos nos apaixonando. Ou, então, fiquei imaginando, eu é que era outro homem, meu próprio rival sexual, vindo roubá-la de mim. Quando lhe contei, ela riu e me disse que, para um sujeito simples, eu era um simples muito complicado e foi quando paramos para nos beijar, refletindo em voz alta se não teria sido melhor ir logo para cama, em casa, que percebemos, através da folhagem fresca, o balão de hélio à deriva sonhadoramente do outro lado do vale cheio de árvores, a oeste de onde a gente estava. Nem o homem, nem o menino eram visíveis para nós. Lembro de ter pensado, sem dizer, que essa era uma forma precária de transporte, onde quem define o curso é o vento, não o piloto. Depois pensei que seria essa precisamente a natureza de sua atração. E instantaneamente a idéia me fugiu da cabeça.
Passamos pelo primeiro bosque, até chegar em Pishill, parando para admirar as folhas novas nas faias. Cada folhinha parecia brilhar com uma luz de dentro. Falamos sobre a pureza dessa cor, folhas de faia na primavera, e como olhar para ela limpa a mente. À medida que íamos caminhando pelo bosque, o vento ia ficando mais forte e os galhos rangiam como maquinaria enferrujada. Nós conhecíamos aquele caminho muito bem. Era com certeza a paisagem mais linda a uma hora do centro de Londres. Eu adorava as quebras e ondas do campo, com seus blocos de calcário e sílex aqui e ali, e as trilhas que mergulhavam na escuridão das plantações de faias, até alguns vales mal cuidados, mal drenados, onde o musgo grosso e iridescente cobria os troncos apodrecidos das árvores e, ocasionalmente, vislumbravam-se uns cervos pequenos, aos tropeções na vegetação rasteira.
A maior parte do tempo dessa nossa caminhada a oeste vínhamos falando da pesquisa da Clarissa: John Keats morrendo em Roma, numa casa ao pé da escadaria na Piazza di Spagna, onde se hospedara com seu amigo Joseph Severn. Seria possível que ainda existissem três ou quatro cartas inéditas de Keats? Poderia uma delas ser endereçada a Fanny Brawne? A Clarissa tinha bons motivos para pensar que sim e passara boa parcela de um semestre acadêmico em licença, viajando pela Espanha e Portugal, visitando casas conhecidas de Fanny Brawne e da outra Fanny, irmã de Keats. Agora estava de volta de Boston, onde estivera trabalhando na Biblioteca Houghton, em Harvard, tentando encontrar a correspondência de parentes distantes de Severn. A última carta conhecida de Keats foi escrita quase três meses antes de sua morte, e endereçada ao velho amigo Charles Brown. Guarda um tom sobranceiro, mas é característica ao jogar, quase entre parênteses, uma descrição brilhante da criação artística: "O entendimento do contraste, o senso de luz e sombra, toda aquela informação (no sentido primitivo) necessária a um poema, são grandes inimigos da recuperação gástrica". É aquela com a despedida famosa, tão pungente em sua reticência e cordialidade: "Mal posso lhe dizer adeus, mesmo numa carta. Sempre fui sem jeito para as cortesias. Deus o abençoe! John Keats". Mas todas as biografias concordam que Keats estava se curando de uma tuberculose quando escreveu essas linhas e permaneceu neste estado por mais dez dias. Visitou a Villa Borghese e passeou pelo Corso. Escutou com prazer Severn tocando Haydn, malcriadamente jogou o almoço pela janela, em protesto contra a qualidade da comida, e até pensou em escrever um novo poema. Se existissem cartas desse período, que motivo teria Severn ou, com maior probabilidade, Brown, para suprimi-las? A Clarissa pensava ter descoberto a resposta em duas referências nas cartas entre parentes distantes de Brown, escritas na década de 1840, mas ainda precisava reunir maiores provas, de outras fontes.
- Ele sabia que nunca mais veria Fanny, me disse. - Escreveu para Brown dizendo que a simples visão do nome dela escrito era mais do que podia suportar. Mas jamais deixou de pensar nela. Ainda estava razoavelmente saudável naqueles dias de dezembro e gostava tanto de Fanny. É fácil imaginá-lo escrevendo uma carta que nunca teve intenção de enviar.
Eu apertei sua mão e não disse nada. Sabia pouco sobre Keats ou sua poesia, mas achava possível que na sua condição de desamparo não tivesse querido escrever precisamente porque a amava tanto. Naqueles dias eu andava pensando que o interesse da Clarissa por essas supostas cartas tinha algo a ver com a nossa própria história e com sua convicção de que o amor que não encontra expressão numa carta é menos que perfeito. Nos primeiros meses depois de nos conhecermos e antes de comprarmos o apartamento ela havia me escrito umas coisas lindas, apaixonadamente abstratas em sua exploração dos modos como nosso amor era diferente e superior a qualquer outro que jamais existiu. Talvez seja essa a essência de uma carta de amor, a exaltação do único. Eu tinha me esforçado para responder à altura, mas tudo que a sinceridade me permitia eram os fatos, que me pareciam miraculosos o bastante: uma mulher bonita, amada e disposta a ser amada por um sujeito grandalhão, meio sem jeito, começando a perder o cabelo e quase incapaz de acreditar na própria sorte.
c hegando perto de Maidensgrove, paramos para observar o gavião. O balão talvez tenha cruzado de novo por cima de nossa trilha, enquanto passeávamos dentro dos bosques que cobrem o vale em torno à reserva natural. Pelo início da tarde, chegamos a Ridgeway Path, caminhando rumo ao norte, junto à escarpa. Dali descemos por uma das pontas largas de terra que se projetam a oeste, desde os Chilterns até as plantações viçosas lá embaixo. Do outro lado do vale de Oxford dava para distinguir o perfil dos montes Cotswold e, mais além, talvez, os faróis de Brecon, elevando-se no meio de uma massa vagamente azul. Nosso plano era fazer o piquenique bem no fim, onde a vista era a mais bonita, mas o vento a esta altura estava forte demais. Voltamos atravessando o campo e nos abrigamos entre os carvalhos, no lado norte. E foi por causa dessas árvores que não vimos a descida do balão. Mais tarde eu me perguntaria por que ele não fora carregado milhas adiante. Mais tarde ainda, fiquei sabendo que o vento a 170 metros de altura, naquele dia, não era igual ao vento no chão.
O assunto Keats foi morrendo enquanto a gente desempacotava o almoço. A Clarissa tirou a garrafa da mochila e a passou para mim, segurando pelo fundo. Como já disse, o gargalo tocava a palma da minha mão quando ouvimos o grito. Era uma voz de barítono, num tom ascendente, de medo. Marcou um início e, é claro, um fim. Naquele momento, fechou-se um capítulo -não, um estágio inteiro- da minha vida. Tivesse eu consciência e um ou dois segundos de sobra, poderia ter me permitido um mínimo de nostalgia. Estávamos no sétimo ano de um casamento apaixonado, sem filhos. Clarissa Mellon estava apaixonada por outro homem também, mas com o seu bicentenário de nascimento se aproximando, ele não chegava a ser um problema. Na verdade até ajudava, nas sessões de combate que contribuíam para o nosso equilíbrio, nosso jeito de falar do trabalho. Nós morávamos num edifício art déco na zona norte de Londres, com uma dose abaixo do normal de preocupações -dinheiro curto por pouco mais de um ano, uma suspeita não confirmada de câncer, os divórcios e doenças dos amigos, a irritação da Clarissa com meus ocasionais surtos compulsivos de insatisfação com o trabalho-, mas não havia nada que ameaçasse nossa existência íntima e livre.
O que nós vimos quando levantamos do nosso piquenique foi o seguinte: um balão enorme, do tamanho de uma casa, com forma de lágrima, tinha descido no campo. O piloto devia estar com meio corpo para fora do cesto de passageiros quando o balão tocou no solo. A perna dele ficara enroscada numa corda amarrada à âncora. Agora, com as rajadas de vento erguendo e empurrando o balão na direção da escarpa, ele estava sendo meio puxado, meio carregado campo afora. No cesto havia uma criança, um menino de uns dez anos. Num instante súbito de calmaria, o homem se pôs de pé e tentou agarrar o cesto, ou o menino. Veio outra rajada, então, e o piloto caiu de costas, aos trambolhões pelo chão esburacado, se esforçando para enterrar os calcanhares na terra, como ponto de apoio, ou dando uns botes para pegar a âncora atrás de si e prendê-la no chão. Mesmo se tivesse tido uma chance, não pensaria em se desvencilhar da corda. Precisava do peso do próprio corpo para manter o balão no solo e o vento poderia ter lhe arrancado a corda das mãos.
Enquanto eu corria ouvi o homem gritar com o menino, insistindo para que saísse do cesto. Mas o garoto era jogado de um lado a outro à medida que o balão cambaleava no campo. Conseguiu se equilibrar e passou uma perna pela beirada. O balão subiu e caiu, com todo o peso, num morrinho e o menino desapareceu para trás. Depois surgiu de novo, com os braços esticados na direção do homem e gritando alguma coisa para ele -palavras ou puro terror inarticulado, eu não poderia dizer.
Eu devia estar a uns cem metros de distância quando a situação ficou sob controle. O vento baixou e o homem agora estava de pé, curvado sobre a âncora, que ele estava enterrando no chão. Já tinha livrado a perna da corda. Por algum motivo -complacência, exaustão, ou simplesmente porque tinham lhe mandado- o menino permanecia no cesto. O balão furioso foi titubeando e se inclinando e se arrastando aos puxões, mas a fera estava domada. Diminuí o passo, mas não cheguei a parar. Quando se ergueu, o homem nos avistou -pelo menos aos dois trabalhadores e a mim- e ficou fazendo gestos nos chamando. Ele ainda precisava de auxílio, mas fiquei feliz de diminuir o ritmo. Os trabalhadores, a esta altura, também já vinham só caminhando. Um deles tossia alto. Mas o homem do carro, John Logan, sabia de uma coisa que nós não sabíamos e continuou correndo. Quanto a Jed Parry, minha visão dele estava bloqueada pelo balão no meio.
O vento renovou a violência na copa das árvores antes que eu sentisse sua força nas costas. Bateu depois no balão, que interrompeu seu balanço inocente, meio cômico, e parou de pronto. Seu único movimento era um tremor de tensão provocando ondas na superfície estriada, enquanto por dentro ia acumulando energia. Logo saltou livre, a âncora voou num jato de terra e balão e cesto subiram três metros no ar. O menino foi jogado para trás e saiu de vista. O piloto, que segurava a corda nas mãos, foi erguido a um meio metro. Se Logan não o tivesse alcançado e segurado uma das muitas cordas penduradas, o balão teria levado o garoto embora. Em vez disso, os dois homens juntos estavam sendo arrastados campo abaixo e os trabalhadores e eu nos pusemos de novo a correr.
Eu fui o primeiro a chegar. Quando peguei uma corda, o cesto já estava acima da minha cabeça. O menino, lá dentro, berrava. Mesmo com todo o vento, senti cheiro de urina. Jed Parry se atracou noutra corda segundos depois de mim e a dupla de trabalhadores, Joseph Lacey e Toby Greene, pegaram as suas logo em seguida. Greene estava tendo um acesso de tosse, mas manteve o aperto. O piloto nos gritava instruções, mas freneticamente demais e ninguém estava prestando atenção. Fazia muito tempo que vinha se debatendo e agora estava exausto e emocionalmente fora de controle. Com nós cinco nas cordas, o balão ficou seguro. Simplesmente tínhamos de nos manter firmes de pé e ir passando uma mão por cima da outra até baixar o cesto; e isto, a despeito do que o piloto pudesse estar gritando, foi o que começamos a fazer.
A esta altura já estávamos na escarpa. O solo sofria uma quebra aguda, uma inclinação de uns 25% e depois ia se nivelando suavemente até embaixo. Durante o inverno, esse declive era um tobogã de neve predileto das crianças. Todo mundo estava falando ao mesmo tempo. Dois de nós, eu e o homem do carro, queríamos levar o balão para longe da beirada. Outro dava prioridade a tirar o menino do cesto. Alguém insistia com a gente para puxar o balão para baixo e ancorá-lo com firmeza. O que não contradizia a primeira idéia, porque era possível puxar o balão para baixo e caminhar para trás ao mesmo tempo. Mas era a segunda opinião que estava prevalecendo. O piloto tinha uma quarta idéia, mas ninguém sabia, ou tinha interesse em saber o que era.
Eu deveria deixar bem claro uma coisa. Talvez tenha havido alguma vaga comunhão de propósito, mas nós nunca chegamos a formar uma equipe. Não havia ocasião para tanto, não dava tempo. Coincidências de tempo e espaço e uma predisposição para ajudar haviam nos reunido sob o balão. Ninguém estava no comando -ou estávamos todos, numa competição de gritos. O piloto, de rosto vermelho, aos berros e suando, nós ignoramos. A incompetência exalava dele como o calor do corpo. Mas de nossa parte também estávamos começando a dar instruções aos berros. Tenho consciência de que se tivesse sido o líder inconteste a tragédia não teria acontecido.

Continua à pág. 5-10

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