São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Cotidiano de morte e opulência

MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Campinas, interior da província de São Paulo, 1869. Em um peculiar linguajar, e, claramente emocionado, Isidoro Gurgel passa a escrever: "Entre os mais bens que possuo, sou senhor e possuidor de uma escrava de nome Ana, e como a referida escrava é minha mãe, verificando-se a minha maioridade hoje, pelo casamento de ontem, por isso achando-me com direito, concedo à referida minha mãe plena liberdade, a qual concedo de todo o meu coração".
Dezoito anos, muitos quilômetros e sentimentos infinitamente menos nobres o separam do dia em que Maria José, fazendeira em Vassouras, dará entrada no juizado da cidade a um pedido de divórcio e de separação de bens. Antônio, seu segundo marido, dilapidara a sua fortuna, se apoderara ilegalmente da herança das filhas do primeiro matrimônio e, como se não bastasse, mantinha na corte a outra mulher. Injúria suprema, pois "a outra" era Marcelina, ex-mucama da fazendeira, por Antônio libertada no passado. A petição anexava também uma foto da ex-escrava, típica "carte de visite" que se ofertava aos entes queridos. Nela, ricamente vestida e sem sequer olvidar o leque na mão esquerda, Marcelina em nada se diferia de qualquer ricaça da época -a não ser pelo profundo desconforto estampado nos olhos, e pelo negro da pele.
Com certeza interceptada pelo mesmo indiscreto aliado de "Dona Maria José", acompanhava-a uma carta que, na despedida, a todos revelava um insaciável "Seu Antônio": "Adeus, minha negra, recebe um abraço muito e muito saudoso, e até breve. O frio já está apertando, e faz-me lembrar das noites da barraca com uma saudade que me põe fora de mim; está bom, não quero dizer mais nada por hoje (pois) se começo a me lembrar de certas coisas, em vez desta carta vou eu mesmo...".
Estas são algumas deliciosas passagens do segundo volume da coleção "História da Vida Privada no Brasil", lançado pela Companhia das Letras sob organização de Luiz Felipe de Alencastro. Trata-se de um daqueles raros livros que, por si só, se alçam à condição de documentos.
Documento iconográfico, em primeiro lugar, por onde passeiam gravuras, aquarelas, pinturas e fotografias ricamente impressas, convidando o leitor a folhear o livro a esmo. Na capa já se intui o que virá: uma expressiva foto de 1860 enquadra o menino rico e branco, em terno abraço em sua possível ama africana. Festas, enterros, labutas, gestos, roupas e castigos se sucedem depois, por meio de penas e pincéis de Victor Frond, Bauch, Harro-Harring e muitos outros.
A estas verdadeiras feras se soma a modernidade imperial, presente nos trabalhos de fotógrafos pioneiros como Felix Nadar, Otto Heess e demais, que nos presenteiam com missas, passeios, paisagens e as comemorações pelo fim da Guerra do Paraguai, mas também com chocantes imagens da seca de 1877-78. Impressiona particularmente o trabalho de Militão Augusto, que, por volta de 1870, captura um zangado senhor calçado e seus patéticos negros e mulatos de pés no chão -todos muito desajeitados, naturalmente, já que, na época, tirar uma foto exigia dos fotografados absoluta imobilidade por, no mínimo, dois minutos.
Documento demográfico também, o volume cruza o "Atlas do Império do Brazil" (1868) com os dados do censo de 1872. O que se promove, assim, é o encontro de duas preciosidades: do monumental trabalho do geógrafo e jurista maranhense Cândido Mendes de Almeida -a primeira visualização integral do território brasileiro- com os números do primeiro levantamento geral da população nacional. Dele resulta uma inédita espacialização de variáveis estruturais, como as taxas de masculinidade das populações livre (inclusive a estrangeira) e escrava, o estado civil dos recenseados, os aldeamentos indígenas, a participação de alfabetizados e professores entre os entrevistados, entre diversos outros perfis.
Os contornos assumidos pelos capítulos que compõem o volume revelam a arguta opção de Alencastro: uma vez definido o enfoque regional como eixo, deixou-se por conta dos colaboradores a tarefa de delimitar os recortes teórico e temático. Nem sempre se pode tomar semelhante decisão, a menos que se conte, como no presente caso, com um seleto time de profissionais da história. Eles trouxeram ao público não especializado informações e análises acerca do cotidiano da morte, da opulência baiana e das relações entre escravos e senhores no Sudeste brasileiro. Temas que, de resto, já se encontravam presentes em trabalhos anteriores, notáveis, mas de restrita circulação, feitos por João Reis ("A Morte É uma Festa", Companhia das Letras, 1992), Kátia Mattoso ("Bahia, Século 19", Nova Fronteira, 1992) e Hebe Castro ("Das Cores do Silêncio", Arquivo Nacional, 1995).
Estão também presentes neste volume da "História da Vida Privada" o inovador estudo de Ana Mauad sobre a imagem e a auto-imagem do Segundo Reinado, além da cotidianidade dos europeus recém-chegados ao sul do Brasil, estudada conjuntamente por Maria Luiza Renaux e pelo próprio Luiz Felipe. O fino tratamento dado por Evaldo Cabral de Mello à decadência das casas-grandes pernambucanas a partir de uma biografia e de um diário aborda -como em outra perspectiva antes o fizera Kátia Mattoso- um dos pilares da vida cotidiana brasileira desde a época colonial. Refiro-me ao ideal aristocrático que plasmava tanto a esfera pública quanto a privada, congregando ao seu redor figuras tão díspares como mercadores, plantadores, burocratas e mesmo pobretões de todos os matizes.
Infelizmente, da natureza econômica profunda desse ideal poucos ainda se dão conta. Aferrados a modelos explicativos que já carregam nas costas uns bons e veneráveis 60 anos, muitos tomam com reservas aquilo que o recente escancaramento dos arquivos, promovido pelos cursos de pós-graduação em história, teima em mostrar: que, desde pelo menos o início do século 18, a economia brasileira era dominada pelo capital mercantil residente.
Nada mais natural, portanto, que a esterilização de grande parte do excedente econômico daí derivada seja, também ela, olimpicamente ignorada por nossa história econômica. Há mais, porém: muitas empresas mercantis, após atuarem por no máximo duas gerações, viam seus responsáveis abandonarem os misteres comerciais em prol de atividades rentistas urbanas ou para se tornarem senhores de terras e de homens. Tal reconversão geralmente implicava abandonar setores cuja rentabilidade era bem superior à da agricultura, e mesmo àquilo que se podia auferir com os aluguéis e as fazendas de açúcar e café. Um exemplo: no século 19, enquanto os aluguéis urbanos ofereciam um retorno líquido de mais ou menos 10% anuais sobre o capital investido, o tráfico legal de africanos gerava aos negreiros um lucro médio de quase 20% por expedição.
Por trás de tão estranho movimento de reconversão estava a forte presença do ideal aristocratizante, identificado ao controle do maior número possível de homens e à afirmação da distância em relação ao mundo do trabalho. Na realidade, este movimento demonstra cabalmente não ter havido no Brasil qualquer contradição entre a hegemonia do capital mercantil parasitário e os setores verdadeiramente produtivos da economia. Muito pelo contrário. Porque, em primeiro lugar, a existência de esferas mercantis dominantes reforçava o caráter arcaico (isto é, não-capitalista) da economia, além de cercear a mobilidade econômica dos lavradores. Em segundo lugar, ao se constituírem em rentistas e fazendeiros, estes comerciantes se convertiam em membros do topo da hierarquia por meio da reafirmação da natureza excludente da sociedade, já que com eles se cristalizavam grupos sociais à margem do mundo do trabalho. Por último, e mais importante, dado que parcela expressiva da riqueza agrária fora esterilizada quando apropriada pelos comerciantes, a transformação destes em plantadores implicava o retorno à mesma produção agrária da riqueza anteriormente expropriada.
Sobre o patriarcalismo que permeava o dia-a-dia de senhores e escravos no oeste paulista se detém Robert Slenes, cujos estudos, invariavelmente precisos e delicados, vêm conduzindo os negros escravos da cozinha para a sala de estar da historiografia. O rigor imposto ao seu trabalho também aparece nos outros capítulos, e resulta em um muito rico "approach" metodológico, que combina diferenciadas dimensões da cultura, do cotidiano, da família e da economia.
Bom para o grande público, que passa a contar com resultados de pesquisas de ponta. Bom, enfim, para todos os que gostam de ler e de se informar. A quem possua olhos para ver e ouvidos para escutar, Alencastro, Reis, Mattoso, Castro, Slenes, Mauad, Renaux e Cabral de Mello oferecem sólidos elementos que, congregados, ajudam a esconjurar um certo niilismo suburbano (isto é, inculto, ligeiro e não raro dotado de perversão), tão em voga em algumas searas.

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