São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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NÓS OU EU

IAN MCEWAN

Nenhuma situação de emergência jamais foi resolvida com eficácia num processo democrático

Continuação da pág. 5-9

Mais tarde escutei alguns dos outros dizerem o mesmo. Mas não havia tempo, não havia oportunidade para uma expressão de força ou caráter. Qualquer líder, qualquer plano traçado teria sido preferível a nenhum. De todas as sociedades humanas já estudadas pela antropologia, não existe uma única, da caça-e-coleta à pós-industrial, que não tenha tido seus comandantes e comandados; e nenhuma situação de emergência jamais foi resolvida com eficácia num processo democrático.
Não era tão difícil baixar o cesto de passageiros o suficiente para se olhar para dentro. Havia um novo problema. O garoto se encolhera todo no chão. Cobria o rosto com os braços, agarrando o cabelo com força. - Como é o nome dele?, perguntamos para o homem suado.
- Harry.
- Harry!, gritamos. - Vamos lá, Harry. Harry! Pegue a minha mão, Harry. Saia daí, Harry!
Mas o Harry se encolheu ainda mais. Tremia cada vez que a gente dizia o seu nome. Nossas palavras eram como pedras atiradas sobre o corpo dele. Estava em plena paralisia da vontade, um estado conhecido como desamparo condicionado, que se observa com frequência em animais de laboratório submetidos a um stress incontrolável; todos os impulsos de resolução de problemas desaparecem, todo instinto de sobrevivência é drenado. Puxamos o cesto até o chão e conseguimos mantê-lo assim, e já estávamos nos inclinando para tirar o menino quando o piloto se meteu com um empurrão e tentou pular para dentro. Mais tarde relatou que nos disse o que queria fazer. Não escutamos nada, por conta da nossa própria gritaria e dos mil impropérios. O que ele estava fazendo parecia ridículo, mas suas intenções, afinal, tinham sido mais do que sensatas. Queria desinflar o balão, puxando uma corda amarrada dentro do cesto.
- Seu cabeça de bagre!, gritou Lacey. - Ajude a tirar o menino daí.
Eu escutei o que vinha vindo dois segundos antes de chegar até nós. Era como se um trem expresso estivesse atravessando as copas das árvores, rompendo a toda velocidade na nossa direção. Um som aéreo, entre um queixume e uma chibatada, cresceu de volume em meio segundo. No inquérito, as cifras do departamento de meteorologia para a velocidade dos ventos naquele dia formaram parte da evidência; algumas rajadas, segundo consta, atingiram mais de cem quilômetros por hora. Essa devia ser uma delas, mas antes que nos alcance deixe eu congelar a imagem -há um certo conforto na imobilidade- para descrever o nosso círculo.
À minha direita, o terreno sofria uma queda abrupta. Imediatamente à minha esquerda estava John Logan, clínico geral em Oxford, 42 anos, casado com uma historiadora, com dois filhos. Não era o mais jovem do grupo, mas com certeza o em melhor forma física. Jogava tênis bem o bastante para disputar o torneio regional e era membro de um clube de alpinismo. Tinha feito um estágio com um grupo de resgate, nas montanhas da Escócia. Logan era um sujeito gentil e discreto, aparentemente, de outro modo poderia ter se imposto, com proveito geral, como nosso de outro modo poderia ter se imposto, com proveito geral, como nosso líder. À sua esquerda vinha Joseph Lacey, 63 anos, trabalhador do campo, vivendo de bicos, capitão da equipe local de boliche. Morava com a mulher em Watlington, um vilarejo ao pé da escarpa. Continuando no sentido horário, o próximo era Toby Greene, 58 anos, também trabalhador rural, solteiro, morando com a mãe em Russell's Water. Os dois trabalhavam nas terras dos Stonor. Era Greene quem tinha a tosse de fumante. Na sequência do círculo, tentando entrar no cesto, Humphrey Gadd, 55 anos, executivo de uma pequena firma de publicidade, que vivia em Reading com a mulher e um dos filhos crescidos, doente mental. No inquérito, ficou constatado que Gadd incorreu em meia dúzia de falhas básicas de segurança, listadas pelo magistrado em tom monocorde. Sua licença de vôo foi cassada. O garoto no cesto era Harry Gadd, neto dele, dez anos, de Camberwell, Londres. À minha frente, com o declive à sua esquerda, Jed Parry. Desempregado, 28 anos, vivia de herança em Hampstead.
Essa era a tripulação. Para nosso efeito, o piloto abdicara da autoridade. Estávamos ofegantes, nervosos, cada um decidido a seguir seu plano, enquanto o menino se mantinha além de qualquer participação na própria sobrevivência. Enovelado em si mesmo, bloqueava o mundo com os braços. Lacey, Greene e eu estávamos nos esforçando para pescar ele de lá, e Gadd agora veio escalando por cima de nós. Logan e Parry ficaram nos gritando sugestões. Gadd conseguira pôr um pé ao lado da cabeça do neto e Greene estava praguejando com ele quando aconteceu. Um punho poderoso esmurrou o balão com dois socos ligeiros, um-dois, o segundo mais maldoso que o primeiro. E o primeiro já era maldoso. Arremessou Gadd fora do cesto, direto para a terra e levantou o balão de uma vez, mais ou menos um metro e meio no ar. O peso considerável de Gadd foi removido da equação. Minha corda correu, queimando a palma das mãos, mas consegui ficar segurando, com meio metro de sobra. Os outros continuavam segurando também. Agora o cesto estava bem acima das nossas cabeças e ficamos de braços para cima, como tocadores de sino na igreja. Em meio ao nosso silêncio de espanto, antes que a gritaria recomeçasse, veio o segundo soco e atirou o balão para cima e para oeste. Subitamente estávamos pisando o ar, com todo o peso do corpo na força dos punhos.
Aqueles um ou dois segundos sem chão ocupam tanto espaço na memória quanto uma longa excursão num rio nunca antes navegado. Meu primeiro impulso foi o de aguentar, para dar lastro ao balão. A criança era incapaz de qualquer resposta e estava prestes a ser carregada. Três quilômetros a oeste ficavam as linhas de alta voltagem. Uma criança sozinha e precisando de ajuda. Era meu dever aguentar e imaginei que todos fariam o mesmo.
Quase simultaneamente com o desejo de me manter na corda e salvar o garoto, virtualmente um impulso neuronal mais tarde, vieram outras idéias, nas quais se fundiam o medo e certos cálculos de complexidade logarítmica. Estávamos subindo cada vez mais alto e o chão ia ficando cada vez mais longe à medida que o balão era empurrado para oeste. Eu sabia que tinha de trançar as pernas e os pés na corda. Mas o fim dela mal me dava na cintura e as mãos já não estavam aguentando. Minhas pernas se agitavam no ar vazio. Cada fração de segundo que passava aumentava a altura da queda e logo chegaria um ponto em que largar a corda seria impossível ou fatal. E comparado a mim Harry estava a salvo, encolhido no fundo do cesto. O balão poderia muito bem pousar, sem maiores problemas, no pé do morro. E talvez meu impulso de não largar a corda não passasse de uma continuação do que eu vinha tentando fazer alguns segundos antes, simplesmente uma dificuldade de me reajustar com rapidez.
De novo, então, menos de um batimento cardíaco encharcado de adrenalina depois, outra variável foi acrescida à questão: alguém se largou e o balão, com os que estavam pendurados, deu mais um pulo de um metro e pouco para cima.
Não soube na hora, nem jamais fiquei sabendo quem foi o primeiro a largar a corda. Não estou preparado para admitir a hipótese de que tenha sido eu. Mas cada um de nós afirma não ter sido o primeiro. O que é seguro é que se não houvéssemos nos dividido nosso peso conjunto teria trazido o balão de volta ao solo um quarto do declive abaixo e poucos segundos depois, quando o vento acalmou. Mas, como disse, não havia uma equipe, não havia plano, nenhum compromisso a ser quebrado. Nenhum fracasso. Será, então, que se pode aceitar que correu tudo certo, cada um por si? Ninguém discordou, mais tarde, de que este foi um curso razoável de ação? Jamais tivemos esse consolo, porque um pacto mais fundo, ancestral e automático, está inscrito na nossa natureza. A cooperação -a base dos mais primitivos sucessos de sobrevivência das tribos de caça, a força por trás de nossa crescente capacidade para a linguagem, o instrumento de coerência social. Nossa aflição depois, no "aftermath", foi prova da nossa consciência de fracasso pessoal. Mas largar a corda era nossa natureza também. O egoísmo está escrito em nossos corações. Esse é o nosso dilema de mamíferos -o que oferecer aos outros e o que guardar para si. Equilibrar-se nessa linha, mantendo o olho nos outros e sendo vigiado por eles, é o que chamamos moralidade. Suspenso a alguns metros de altura, sobre a escarpa em Chiltern Hills, nosso grupo dramatizou o conflito ancestral e sem resposta: nós ou eu.
Alguém disse eu e então não havia mais nada a ganhar dizendo nós. De maneira geral, a gente exerce o bem quando faz sentido. Uma sociedade boa é aquela que dá sentido a essa bondade. De um momento para outro, pendurados embaixo do cesto, nós estávamos numa sociedade em pedaços, estávamos nos desintegrando. De um momento para outro, a escolha sensata era cuidar de si. O menino não era meu filho e eu não ia morrer por ele. No instante em que vi de relance um corpo caindo -mas de quem?- e senti o balão dar um solavanco para cima, a questão estava decidida: não havia lugar para altruísmo. Bondade não fazia sentido. Larguei a corda e me fui ao chão, calculo, de uns quatro metros. Caí com todo peso de lado e me safei com uma perna machucada. Ao meu redor -antes ou depois, não tenho tanta certeza- se despencavam outros corpos. Jed Parry ileso. Toby Greene quebrou o calcanhar. Joseph Lacey, o mais velho, fizera serviço militar com o regimento de pára-quedistas e só teve o trabalho de dar uma cambalhota.
Até eu me pôr de pé o balão já estava a 50 metros de distância e um homem continuava balançando na corda. Em John Logan, marido, pai, médico e membro de uma equipe de resgate de alpinismo, a chama altruísta deve ter queimado um pouco mais forte. Não precisava ser muito. Quando quatro de nós se largaram, o balão, liberado de uma carga de 300 quilos, deve ter dado um salto. Um segundo de hesitação seria o bastante para cancelar qualquer alternativa. Quando levantei e o vi, ele estava a uns 30 metros de altura e em ascensão, precisamente no ponto onde o terreno desce. Não estava se debatendo, dando chutes no ar, tentando subir pela linha. Perfeitamente imóvel, pendia ao longo da corda, toda energia concentrada nos punhos cada vez mais sem força. Já era uma figura minúscula, quase um ponto preto no céu. Do menino não se avistava nada. O balão e seu cesto foram se afastando para cima e para oeste e, quanto menor ficava Logan, tanto mais terrível, tão terrível que chegava a ter graça, uma acrobacia, uma brincadeira, um desenho animado; e um riso de medo me escapou do peito. Porque esse era o tipo de disparate que acontece com o Pernalonga, ou Tom e Jerry, e por um instante até pensei que não era verdade e que só eu era capaz de perceber a piada e minha descrença completa traria tudo de volta ao normal, com o doutor Logan são e salvo no chão.
Não sei se os outros estavam de pé ou se arrastando. Toby Greene devia estar dobrado sobre o calcanhar. Mas lembro do silêncio quando eu ri. Nada de exclamações, nada de instruções aos gritos como antes. Desamparo mudo. Ele agora estava a 200 metros de distância e uns 100 metros, talvez, de altura. Nosso silêncio era uma espécie de aceitação, uma sentença de morte. Ou então vergonha horrorizada, porque o vento baixara, mal dava para sentir nas costas. Ele estava há tanto tempo na corda que eu comecei a achar que ficaria assim até o balão pousar sozinho, ou até que o menino recuperasse a lucidez e descobrisse a válvula do gás, ou até que um raio, ou um deus, ou alguma outra coisa impossível de desenho animado aparecesse para apanhá-lo. Nem bem tinha nutrido essa esperança quando o vimos deslizar até o fim da corda. E continuava lá. Por dois segundos, três, quatro. E então se largou. Mesmo então, houve uma fração de tempo em que ele praticamente não caiu e eu ainda pensei na possibilidade de que alguma lei aberratória da física, ou uma corrente quente poderosíssima, algum fenômeno não mais estranho do que esse que estávamos testemunhando sobreviesse para sustentar seu peso. Ficamos vendo ele cair. Dava para perceber a aceleração. Sem misericórdia, sem qualquer concessão especial para a carne, para a coragem ou a bondade. Só a gravidade impiedosa. E de algum ponto, talvez dele mesmo, ou de algum pássaro indiferente, ouviu-se um grasnido fino cortar o ar. Caiu como tinha se pendurado, um palito preto rígido. Eu nunca vi nada tão terrível quanto aquele homem caindo.

Copyright Ian McEwan 1997. O texto acima foi publicado pela primeira vez na revista "The New Yorker". Ele é o primeiro capítulo do livro "Enduring Love", de Ian McEwan, a ser publicado em 1998 no Brasil pela Rocco, que também editou, do mesmo autor, "O Inocente", "Cães Negros", "Jardim de Cimento" e "Ao Deus-Dará".

Tradução de Arthur Nestrovski.

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