São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Manifesto contra o silêncio

ADÉLIA BEZERRA DE MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Nos anais dos crimes deste século terrível, a agressão da Indonésia contra Timor Leste ocupa um dos lugares de destaque, não só por causa de suas proporções -talvez o maior índice de mortes em relação à população desde o holocausto dos judeus-, mas porque teria sido tão fácil preveni-la e fazer com que terminasse a qualquer momento". É assim que Noam Chomsky, o grande linguista norte-americano (tão conhecido por sua gramática gerativa quanto pela sua luta em defesa dos direitos humanos) inicia um artigo intitulado "O Mundo Precisa Saber" e que constitui um dos textos mais significativos do livro "Timor Leste - Este País Quer Ser Livre".
Timor Leste? Que país é este? E sobretudo: que temos nós a ver com ele? São essas as reações normais à alusão do genocídio que está sendo perpetrado nesse final de século, diante dos braços cruzados e do olhar distraído do mundo. Um pequeno país, mais precisamente a metade de uma ilhazinha, em forma de jacaré, situada entre os oceanos Índico e o Pacífico, perto -perigosamente perto!- desse "tigre asiático" que é a Indonésia. E quase todos ignoramos que nesse pedaço de terra, quase que nos antípodas do Brasil, fala-se a língua de Camões, pois, em 1515, os portugueses "descobriram" o Timor.
"Olha cá pelos mares do Oriente/ As infinitas ilhas espalhadas.../ Ali também Timor, que o lenho manda,/ Sândalo salutífero e cheiroso" ("Os Lusíadas", "Canto 10", v. 134). Timor comparece, em Camões, significativamente, por meio de sua mais importante produção de extração, o sândalo. Mais importante ao tempo dos Descobrimentos, registremos, porque, agora, é o petróleo que conta. Mas se não há, nessa passagem, conotação negativa à exploração colonial, normalíssima (o Timor "manda" o lenho cheiroso), por outro lado o "Canto 8" da grande epopéia portuguesa se fecha com um eloquente brado contra a "febril cobiça d'oiro" que regia e rege as relações de poder entre os povos. Cobiça que, atualizada, pode ser até a do "oiro" negro: o mar do Timor contém uma plataforma petrolífera submarina das mais cobiçáveis do mundo.
Mas volto ao livro recém-editado, obra de mutirão: organizada por Sílvio Sant'Anna, com coordenação de Frei João Xerri OP (grande ativista dos direitos humanos) e colaboração competente de Lília Azevedo -estes dois últimos, do Grupo Solidário São Domingos.
Com efeito, desdobrada em quatro partes, essa obra é uma verdadeira iniciação à questão do Timor: um capítulo de informação histórica (que traça o percurso sofrido desse pequeno país que vive todas as vicissitudes de sua "condição colonial"), abrigando, entre outros, os textos de Matthew Jardine e de Chomsky; um segundo capítulo, todo centrado em torno de Ramos Horta, Prêmio Nobel da Paz; uma terceira parte, "O Jeito de Ser Timorense", em que se elencam poemas de autores da terra (entre os quais, Xanana Gusmão, o grande líder da resistência, atualmente preso nas masmorras de Suharto, em Jacarta), bem como um estudo sobre o português -que se tornou a língua de resistência- em Timor.
E uma última parte, intitulada "A Solidariedade Já Começou", que não apenas incorpora manifestações de várias personalidades (de Lucélia Santos a d. Paulo Evaristo Arns, passando por João Stédile, do MST) em prol da causa timorense, mas também um adendo, que, sob o título de "O Que Você Pode Fazer", apresenta sugestões para uma mobilização em favor da autodeterminação desse povo.
Detecta-se, assim, um movimento que vai do informativo ao pragmático, do conhecer ao agir. Na realidade, fecha-se um círculo, pois o livro se abrira com um prefácio de Herbert de Souza, apresentando com forte apelo emocional o fato de ter sido uma das últimas coisas escritas pelo Betinho. Um texto quente e afetivo, com a urgência de arrancar da passividade e "descobrir o que a cidadania solidária com as causas libertárias internacionais pode e deve fazer".
Em síntese: alia-se a uma informação séria e documentada a tentativa de resgatar a dimensão humana que há por trás dessa história de invasão e atrocidades. É assim que, integrando o capítulo intitulado "O Jeito de Ser Timorense", estampa-se um poema de Francisco Borges da Costa, cuja última estrofe transcrevo: "Calai/ Calai-vos e calemo-nos/ Por um minuto/ É tempo de silêncio/ No silêncio do tempo. Ao tempo da vida/ Dos que perderam a vida/ Pela pátria/ .../ Calai -um minuto de silêncio". O patético é que, agora, é o caso de pedir um minuto de silêncio por esse jovem poeta, pois ele já se calou para sempre. Uma nota de rodapé à pág. 22 diz laconicamente: Morreu prematuramente, vítima da invasão indonésia".
Mas, em seguida, não se poderá mais admitir nenhum "tempo de silêncio": impõe-se, realmente, um "clamor por Timor" (1).

Notas: 1. É esse, por sinal, o nome do movimento organizado pelo Grupo Solidário São Domingos para apoiar a causa timorense.

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