São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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A noite dos iniciados

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Entusiasta da cultura francesa, aos 40 e tantos anos realizou um sonho: casou-se com uma francesinha que acabara um curso em Montpellier.
Abandonou a vida de boêmio, aos sábados reunia 18 amigos em casa, colocava na vitrola César Franck ou Debussy, apagava as luzes, distribuía 18 exemplares das "Poesias Completas" de Paul Valéry.
À luz de velas, lia meia dúzia de poemas com voz cava, exibindo sua notável pronúncia aprimorada com um mestrado em Nanterre. Os amigos acompanhavam a leitura. Ele botava na vitrola a "Sinfonia em ré maior" de Franck e dizia: "Página 180!"
Todos se inundavam de ré maior e de Valéry maior. Ao fim do sarau, ele recolhia os 18 volumes e o disco. Tomavam um "rouge" de apelação controlada e sentiam-se felizes, ele de ter tão bons amigos, os amigos de terem tão bom amigo.
Noite dessas, alguém trouxe um Rameau, gravação de Solésmes, papa fina, o precedente foi aberto, mas ninguém pensou em substituir o Valéry. O poema escolhido estava na página 76, edição da Gallimard. Acabada a leitura, ele foi recolher os 18 exemplares, mas só conseguiu recuperar 16. Apagaram as velas e acenderam as luzes. Todos começaram a procurar os dois volumes que faltavam.
Encontraram os Valéry numa banqueta que ficava junto à porta de saída. Mas não encontraram os dois que haviam se mandado enquanto o dono da casa lia o poema da página 76. A dona da casa e um dos convidados, aproveitando a unção reinante, haviam dado no pé. Trocaram o Valéry e o Rameau pela música plebéia dos motéis da Barra. E nunca mais voltariam às noites dos iniciados.
Noites que não mais se repetiram. O dono da casa não estrilou nem estourou os miolos. Ficou sem a mulher e sem o amigo, mas conservou intacta sua coleção das "Poesias Completas" de Paul Valéry. Contudo nunca mais ouviu César Franck, muito menos Rameau. Por cautela e gosto, só ouve agora Roberto Carlos e Ângela Rô Rô.

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