São Paulo, domingo, 19 de outubro de 1997
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Colonialismo terceiro-mundista

JOSÉ RAMOS-HORTA

Na lista dos "territórios não-autônomos" (países que ainda não alcançaram sua independência) que constam da agenda da Assembléia Geral da ONU estão Timor Leste, colônia portuguesa durante quase cinco séculos, e Saara Ocidental, colônia que a Espanha abandonou e entregou, sem muitas cerimônias, a Marrocos e Mauritânia em 1975.
A Indonésia, quarto país mais habitado -cerca de 200 milhões de pessoas- e quarto maior país muçulmano do planeta, invadiu Timor Leste em dezembro de 1975. Um mês antes, Marrocos invadira o Saara Ocidental.
Os dois casos revelam grande similaridade jurídica e constituem um fenômeno novo, o colonialismo do Terceiro Mundo. Este substitui o colonialismo europeu, que chegou ao fim na década de 70. O comportamento dos novos colonizadores é mil vezes mais brutal que a colonização das potências ibéricas.
A colonização portuguesa de Timor não foi uma missão filantrópica. Deixou o país em completo subdesenvolvimento. Mas a presença portuguesa, benevolente, foi tolerada pela população.
Portugal, nunca tendo no território mais de mil soldados, não teve problemas em por ali ficar. Não havia mais de cem famílias portuguesas na ilha, e pelo menos 95% dos empregos públicos estavam nas mãos dos timorenses.
Para além de uma rebelião localizada, em 1959, fomentada pela Indonésia, Timor Leste era uma ilha de total tranquilidade e tolerância. Em 1974, ano da Revolução dos Cravos, quando a ditadura portuguesa caiu, não havia um único prisioneiro político timorense nem um só refugiado fora do país. Na época portuguesa, nunca houve violação de mulheres ou prostituição forçada.
O balanço da colonização indonésia é bem diferente. Pelo menos 200 mil timorenses morreram só nos primeiros três anos da invasão. A população era de apenas 700 mil em 1975. Hoje, há pelo menos 20 mil refugiados timorenses na Austrália e mais de 3.000 em Portugal. Milhares fugiram para a Malásia. Há milhares de órfãos e viúvas. Mulheres são violadas e forçadas a prostituir-se para servir o exército de ocupação. Há milhares de vítimas de tortura.
Nenhum país sofreu trauma tão completo e profundo em tão pouco tempo. Famílias e aldeias inteiras desapareceram. O comportamento indonésio só é equacionável com a barbárie em Uganda e Camboja nos anos 70, ou em Ruanda e Burundi hoje. A tão propalada solidariedade sul-sul é substituída pela selvageria cega. Os sentimentos humanos se perdem completamente.
No Saara Ocidental, a situação é menos dramática em termos numéricos de perdas de vidas, mas não menos injusta. Mais de dois terços de uma população nômade, de 200 mil pessoas, vivem em acampamentos precários em território argelino. Apenas poucos milhares estão sob o controle marroquino.
Mas, de novo, aqui se prova que os direitos humanos não são conceito abstrato ou invenção da cultura cristã ocidental. Os milhares de nômades com quem convivi recentemente têm os mesmos sentimentos, preocupações e aspirações dos mortais europeus. Querem paz, tranquilidade, exigem respeito por seus direitos civis e políticos mais fundamentais; querem voltar à pátria. Quem os oprime não é uma potência ocidental, e sim o velho reino de Marrocos, país árabe, muçulmano.
Há outra similaridade entre Timor Leste e Saara Ocidental: ambos foram vítimas -pés de página- da Guerra Fria. Abandonados pelas grandes potências, sofreram com o pragmatismo ocidental, que os sacrificou no altar dos seus interesses econômicos e estratégicos. Os países ocidentais foram cúmplices na agressão, pela venda de armas e pelo apoio econômico e diplomático.
O mundo mudou completamente desde 1975. Indonésia e Marrocos perderam a importância estratégica da Guerra Fria. A conjuntura internacional é mais favorável aos dois povos que lutaram teimosamente contra a indiferença e a cumplicidade internacionais. No caso do Saara, um referendo de autodeterminação foi negociado pela ONU com as partes em conflito. Prevê-se implementá-lo dentro de um ano.
No caso de Timor Leste, a Indonésia continua a recusar a realização de um referendo por saber que a esmagadora maioria do povo votaria um "não" muito forte contra a integração.
A crise econômica e a incerteza da sucessão do ditador Suharto, no poder há mais de 30 anos, retiram do regime sua influência. A dramática queda da Bolsa, a desvalorização da moeda e a alta da dívida externa (US$ 110 bilhões, a terceira maior do mundo) refletem problemas estruturais mais profundos e vão repercutir social e politicamente. É um regime despótico, corrupto e cada vez mais desgastado, que continua obstinadamente a ocupar Timor e a desafiar a comunidade internacional.
Creio que a solidariedade por Timor no Brasil é impartível. Suharto, cuidado. Em menos de um ano, visitei o Brasil três vezes; cada vez encontro mais simpatia, amizade, apoio. No ano que vem, passarei dois meses seguidos. Não será só trabalho. Quero ir ao majestoso Amazonas. Voltar à Bahia, de sedução africana. Passear pelo Rio, com todos os perigos, conversar com meninos de rua, partilhar de novo momentos agradáveis com artistas, intelectuais e jornalistas, gente maravilhosa que meu querido amigo José Aparecido de Oliveira me apresentou num domingo.
Naquele dia, nem acreditei ter me sentado ao lado do famoso Oscar Niemeyer. A seguir, fomos à casa de dois irmãos gêmeos, famosos cartunistas (já não me lembro do nome deles, mas não importa; os brasileiros sabem de quem estou a falar. Gente fantástica).
Depois, em casa de Lucélia Santos, a grande intérprete de "Escrava Isaura", conheci o fantástico Rubens de Falco. Pela primeira vez quis tirar uma foto com alguém. Fico sempre meio ridículo quando me pedem para posar. Sofro, mas faço-o sempre, com um sorriso idiota. Nesse dia vi Itamar Franco, fascinante, apesar de meio reservado. Um amor de pessoa, simples, acessível, charmoso. Um bom presidente.
O Brasil poderia ajudar muito mais o povo de Timor. Uma reunião entre Jorge Sampaio, de Portugal, Fernando Henrique Cardoso, Nelson Mandela e Joaquim Chissano, de Moçambique, poderia aumentar a visibilidade da luta de Timor em 1998 e intensificar a pressão diplomática sobre o regime de Jacarta. FHC poderia ser o anfitrião.
Algum dia, diremos um grande "obrigado de todo o coração, amigo brasileiro". Os brasileiros terão em Timor Leste, livre e independente, um país amigo e grato -a única presença da lusofonia em todo o Oriente.

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