São Paulo, terça-feira, 21 de outubro de 1997
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Os órfãos de Hitler

A neutralidade helvética é a máscara de quem tende a acomodar-se com os poderosos do momento
RICARDO SEITENFUS
A Europa vê-se obrigada a exorcizar dois constrangedores fantasmas que restaram da Segunda Guerra Mundial. Quanto à Suíça, caem por terra suas veneráveis neutralidade e confiabilidade bancária. Ao lado, a altiva França assiste ao processo judicial contra Maurice Papon, ex-ministro de Estado, acusado pela deportação de 1.600 judeus para os campos de extermínio.
Em ambos os casos, trata-se de uma incômoda discussão, com grandes repercussões práticas -e econômicas- sobre a fronteira entre a submissão e a colaboração. Os protagonistas desses casos foram obrigados a assim agir, fizeram muito bem a sua lição de casa ou tinham a nítida vontade de colaborar?
A máquina de guerra nazista triturou, nos primeiros anos do conflito, o conjunto dos países que cercavam a Alemanha. A resistência foi bem-sucedida somente na Inglaterra e, mais tarde, na União Soviética.
Os vizinhos imediatos foram subjugados, à exceção da Suíça, que manteve sua independência: Berlim nunca se propôs a ocupá-la. Até o momento, isso se explicava pelo postulado da neutralidade e pela pretensa dificuldade militar que os nazistas encontrariam numa hipotética ocupação.
Recentes relatórios publicados pelos Estados Unidos, influenciados pela importante comunidade judaica, demonstram que a Suíça somente foi respeitada pelos nazistas em face de sua importante colaboração, sob diversos aspectos.
Existiu a "lavagem" do ouro nazista, confiscado de suas vítimas e trocado pelo franco suíço, passível de conversão, diferentemente do marco alemão. Houve o fornecimento de material estratégico à indústria de guerra de Hitler e a utilização de mão-de-obra de prisioneiros de guerra nas filiais das indústrias suíças localizadas na Alemanha.
As chamadas "contas adormecidas" nos bancos suíços, que jamais puderam ser recuperadas por seus titulares de origem judaica, são a prova de que, mesmo finda a guerra, os suíços não hesitaram em obter um lucro ilegítimo a partir da desgraça alheia, encobertos pelo cômodo véu do silêncio.
Resta claro que a colaboração suíça permitiu o prolongamento da guerra. A sacrossanta neutralidade helvética, responsável pela sua não-adesão à ONU (Organização das Nações Unidas), é a máscara de quem tende a acomodar-se com os poderosos do momento.
Contudo o mais delicado é o fato de a Suíça discutir a questão e admitir reparar as injustiças tão-somente após as revelações do governo dos EUA. O sistema bancário suíço, agora, sofre sanções como as dos Estados de Nova York e da Califórnia, que suspenderam suas operações com os bancos suspeitos de envolvimento com nazistas ou detentores de "créditos adormecidos".
De outra parte, a França julga o seu último suspeito de ter colaborado com os crimes contra a humanidade. Segundo documentos descobertos nos anos 80, Maurice Papon demonstrou, em suas importantes funções de interventor em Bordeaux, o afã colaboracionista do regime de Vichy, que administrava a França ocupada após junho de 40.
No período entre 1942 e 1944, as autoridades francesas enviaram 76 mil judeus para os campos de concentração, dos quais 2.500 sobreviveram. O processo Papon envolve um alto funcionário, de brilhante carreira, que depois da guerra chegou a ser ministro de Giscard d'Estaing.
Somente a pressão dos familiares das vítimas, dos EUA e de Israel tornou possível esse tardio acerto de contas e uma sucessão de arrependimentos. No caso da França, a palavra sobre Papon está com a Justiça, mas existem as declarações da igreja e da polícia, que revisam publicamente sua atitude de silêncio ou colaboração. Quanto à Suíça, muito dependerá da boa vontade dos bancos e do governo helvético.
Esperamos que o resultado dessa revisão forçada não seja nem as luzes da ribalta para alguns nem o espírito de vingança, mas sim uma franca vontade de auxiliar os juízes e os historiadores a melhor compreender -e, por via de consequência, reparar- as injustiças de um período doloroso da história contemporânea.

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 49, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (Suíça), é professor-titular de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e pesquisador associado do Centro de Direito Internacional da Faculdade de Direito do Panthéon (Sorbonne), em Paris.

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