São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 1997
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Sociedade abortiva

CHRISTIAN DE PAUL DE BARCHIFONTAINE

O aborto é uma questão complexa, em torno da qual estamos longe de chegar a um consenso. É importante refletir com a razão, sem cair no emocionalismo que domina muitos debates e tentando entender determinadas -e certamente penosas- decisões. Com amor, sem pretensão de julgar.
A questão do aborto não se resume à decisão de uma mulher. Ela é consequência de um estilo de vida. Vivemos numa sociedade cujo marco principal é a antivida; a falta de solidariedade exclui socialmente multidões de miseráveis e cria uma sociedade abortiva.
No cotidiano dessas multidões, se a criança escapar do aborto durante a gravidez, a sociedade se encarregará de abortá-la pelas armas do abandono material ou psicológico, da subnutrição, do analfabetismo, da mortalidade infantil, do desemprego e da marginalização.
Na base dessa arquitetura social perversa está o individualismo -como filosofia central do capitalismo selvagem-, que procura a defesa dos interesses individuais em detrimento dos coletivos. Tudo é baseado na ênfase da produtividade e do lucro. Todo o aspecto psicológico das relações humanas e sociais é desrespeitado.
Um reflexo dessa mentalidade é a desagregação da família, na qual o encontro, o diálogo, o afeto e o amor são substituídos pelo dinheiro ou pela corrida a bens materiais -também armas abortivas, por levar ao abandono dos filhos. Os meios de comunicação se encarregam de reforçar essa cultura.
A mulher é vista como um simples receptáculo para produzir indivíduos. Ela não será respeitada na sua verdade de ser humano, e o ser em gestação será deficiente, se a geração não for fruto de uma escolha livre e responsável.
Vivemos numa sociedade autoritária, na qual todas as decisões são tomadas por homens, até em assuntos femininos. Nessa sociedade, não é de estranhar que o direito legal do "não-nascido" se sobreponha ao direito do "nascido", ou seja, da mulher. Colocar a vida da mulher em segundo plano é um exercício de discriminação.
Homens e mulheres têm os mesmos direitos e deveres, mas o homem foge; não se responsabiliza pela relação sexual e culpa a mulher, que arca com todas as consequências, até a opção pelo aborto, com o sofrimento que essa decisão acarreta. Não há solução fácil para a questão. Por isso, tentemos ir além de uma visão puramente biológica, focalizando todas as necessidades do ser humano: físicas, psíquicas, sociais e espirituais.
A bioética se apresenta como espaço de discussão interdisciplinar, interprofissional e intercultural -um convite ao diálogo desapaixonado, que contemple o respeito à dignidade da pessoa humana.

Pe. Christian de Paul de Barchifontaine é mestre em Administração Hospitalar e diretor-geral das Faculdades Integradas São Camilo.

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