São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 1997
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'É só o Quarentinha'

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fosse um tempo de escracho, e a manchete desta página esportiva seria: Rebaixado encontra "Um-Zero-Zero", num cantinho da rua Bariri. Um pouco menos, e teríamos: Flu e Timão, o jogo da vergonha.
Envergonhados, menos pelas punições que deixaram de sofrer do que pela ridícula campanha que cumprem no campeonato, Fluminense e Corinthians, quase à socapa, enfrentam-se, às desoras desta quarta-feira cinzenta, no estádio do Olaria, num jogo de morte. Só não é um jogo clandestino porque a TV vai revelar as mazelas dos dois para todo o país. Mas é um episódio para ser esquecido por ambos.
Que reste a lembrança épica daquele Flu e Corinthians que, há mais de 20 anos, comoveu São Paulo e abalou o Rio, com a deslocação para lá de cerca de 70 mil fiéis num final de semana inesquecível. Tão fiéis e tão fanáticos que tentaram espetar uma bandeira do Corinthians na mão direita do Cristo Redentor, como um gesto de conquista e conversão.
Para quem não sabe, o Flu, então, ainda era a Máquina do doutor Horta, com seus Rivellinos e Cajus. Já o Corinthians era um bom time, nada excepcional, mas guerreiro, dirigido pela semântica empolada de Duque e seus orixás.
Pois aqui quero, neste instante, apropriar-me da parcela de participação nessa epopéia, a mim devida por direito do acaso.
Resumindo: por dever de ofício, chegara dias antes ao Rio. Fiquei no Hotel Nacional, onde pousaria a delegação alvinegra no fim-de-semana. E logo fui às Laranjeiras assistir ao treino coletivo do Flu.
Na manhã de domingo, horas antes do início da partida, Duque resolveu me dar uma entrevista exclusiva. E, no seu quarto enfumaçado de incenso, foi direto ao assunto: ele é que queria me entrevistar sobre o treino do adversário. Saí fora, mas plantei uma semente, observação que já havia publicado na minha coluna do "JT": se ele metesse uma marcação forte no hábil meio-campo tricolor e, vez por outra, soltasse Russo, que batia bem de fora da área, às costas de Carlos Alberto Pintinho, que avançava muito e voltava pouco, esse seria o mapa da mina. Revejam o VT desse jogo memorável, please.
*
Vira-e-mexe, os psicólogos de plantão voltam ao campo. Sobretudo, quando os grandes clubes andam deprimidos, como agora. É o Corinthians, é o São Paulo, é o Palmeiras, todos falam em recorrer aos sortilégios desses decifradores modernos da alma humana. E, sempre que isso ocorre, lembra-se de Garrincha e Carvalhaes, na Copa de 58.
Não sei se fato ou invenção do saudoso Sandro Moreyra, mas eis o craque desenhando um enorme triângulo sustentado por um mirrado traço de onde escapam dois braços e duas pernas.
Na busca de esotéricos significados, o psicotécnico questiona Garrincha, que arremata com a simplicidade de um de seus dribles pela direita: "Não quer dizer nada, não, doutor. É só o Quarentinha".
PS para os mais jovens: Quarentinha era um hábil centroavante do Botafogo de Garrincha, magro e cabeçudo, como um desenho de criança.

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