São Paulo, quarta-feira, 22 de outubro de 1997
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Caim, Abel e o manifesto

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

Caim e Abel caminhavam pelo deserto e se reconheceram de longe, porque os dois eram muito altos. Sentaram-se na terra, fizeram fogo e guardaram silêncio, à maneira da gente cansada quando declina o dia. No céu, apenas uma estrela que ainda não recebera seu nome. À luz das chamas, Caim viu na testa de Abel a marca da pedra com que o matou. Deixou cair o pano que levaria à boca e pediu perdão por seu crime.
Esse conto de Jorge Luis Borges ("Elogio de la Sombra"), que agora reescrevo, pode ter vários finais, ao lado do autêntico. Pode ser uma parábola sobre a virtude: Abel diz "eu te perdôo, meu irmão, não porque tu me pediste, mas porque vejo em teus olhos a chama generosa do arrependimento". E Caim diz "agradeço-te, meu irmão, mas permita que te diga não ser esse arrependimento mais nobre que a humildade no confessar minhas fraquezas".
Pode ser uma parábola sobre a justiça: Abel: "Não sou eu quem tem que te perdoar, meu irmão, mas tu mesmo". Caim: "Se assim for, então não há razão para nenhum perdão. O justo que é justo não perdoa, e minha consciência diz que devo pagar por meus erros".
Pode ser uma parábola sobre o remorso: Abel diz "não te perdoei, apenas porque nunca soube quem de nós dois fez mais mal um ao outro -tu, matando-me, ou eu, perseguindo-te como um fantasma desde o paraíso perdido até o fim dos tempos". E Caim diz "já que assim é, irmão, então eu te perdôo, mas tu também me perdoes".
Pode ser uma parábola sobre o perdão: Abel diz "você me matou ou eu te matei? Já não recordo; aqui estamos, juntos como antes". E Caim diz "agora sei que me perdoaste, meu irmão, porque esquecer é perdoar, e eu também tratarei de esquecer".
Quatro finais plausíveis para um mesmo conto -aparentemente iguais e, no entanto, tão diferentes. Quatro finais que dão forma concreta ao eterno drama da realidade e sua máscara, às muitas faces da verdade.
A imprensa, em seu esforço diário de informar, de alguma maneira corre o risco de reproduzir diariamente outros tantos finais. E esse risco de não ser fiel aos fatos decorre, basicamente, da carência de tempo no fechamento da edição, da competição pelo furo, de interesses menores por trás da notícia.
Complicado é que, como sabemos, os fatos são algumas vezes alterados por razões nem sempre muito democráticas. É indispensável construir uma nova Lei de Imprensa que não nos torne reféns desprotegidos do tribunal onisciente e onipotente da mídia, no qual não temos direito a nenhuma defesa.
Que garanta não apenas o direito à liberdade de expressão, mas também a responsabilidade no exercício dessa liberdade. Que histórias como a nossa, de Caim e Abel, sejam contadas como ocorrem; não apenas porque assim deve ser, mas sobretudo porque será para as corporações de comunicação mais interessante economicamente escolher sempre o relato isento dos fatos.
Por tudo isso, o manifesto que ANJ, Aner, Abert e ABI fizeram publicar em todos os jornais e revistas do Brasil deixou um gosto amargo de frustração. As entidades poderiam ter aproveitado para referir as muitas conquistas do projeto; entre outras, a extensão da exceção da verdade a todas as situações, a identificação da publicidade, a pena moral obrigando o veículo de comunicação a noticiar as condenações que sofrer, a idéia de que conflitos entre liberdade de informação e direitos da personalidade são resolvidos em favor do sentido público da informação, um sistema eficiente de direito de resposta.
Elas preferiram denunciar o projeto como a "maior ameaça que a livre circulação de idéias e informação sofre desde o regime militar". Sem nem perceber que essas inovações não dizem o que eles dizem que dizem. Assim é que:
1) "Ao permitir a apreensão de jornais e revistas, (o projeto) retira do leitor o direito de ser informado", segundo o manifesto. Quem permite essas apreensões é a lei em vigor -contra a qual, curiosamente, nada se reclama. O projeto, ressalvando leis especiais, como o Estatuto da Criança, diz exatamente o contrário: "Art. 2º. É vedada a apreensão de jornal ou revista".
2) "A proposta de multas contra jornalistas levaria de volta a autocensura às redações", segundo o manifesto. O projeto apenas substitui a pena de prisão da legislação atual -esta, sim, uma ameaça intolerável à liberdade de informar- por prestação de serviços à comunidade e multa pecuniária "que não cause ao condenado e à sua família privações" (art. 9º, parágrafo 3º).
A multa chega ao anunciado limite de R$ 100 mil apenas "se o juiz verificar que a sanção máxima resulta ineficaz diante do poder econômico do réu" (art. 9º, parágrafo 2º). Não se percebe como essas penas alternativas, evidentemente mais adequadas a delitos de opinião, podem nos devolver à "musa da autocensura", como dizia George Steiner, ou podem representar para o jornalista ameaça maior que a pena de prisão que se pretende agora abolir.
3) "O projeto não limita as indenizações financeiras por calúnias, injúria e difamação (...), o que intimidará os veículos de comunicação na sua missão de manter o Brasil informado", segundo o manifesto. O limite às indenizações pretendido pelas empresas de comunicação não existe em nenhuma Lei de Imprensa de nenhum país do planeta. Falta explicar como uma regra genericamente observada por todos os países democráticos, e que não ameaça democracia nenhuma, conseguirá ameaçar precisamente a democracia brasileira.
Em resumo, o projeto é importante para o país precisamente por conta das razões (entre muitas outras) pelas quais é criticado. Porque proíbe a apreensão de jornais. Porque elimina a pena de prisão para delitos de opinião. E por seguir a tendência de todas as Leis de Imprensa no mundo, estabelecendo relações democráticas entre direitos dos cidadãos e liberdade de informação.
P.S.: O final do conto de Borges, como os leitores já devem ter percebido, é o último.

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