São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 1997
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O diagrama do balão

OTAVIO FRIAS FILHO

Depois de Kafka e Joyce, boa parte da literatura ocidental entrou em estado catatônico. O cinema parecia narrar "melhor" que o livro; expulso do "mundo real", o romance se refugiou no subjetivismo cada vez mais exacerbado do narrador, às vezes na dissolução de qualquer narrativa. Foram décadas de experimentação formal.
Talvez porque a evolução do gosto literário tem algo de pendular, talvez porque a nossa época é de revisionismo e restauração, talvez, ainda, porque os dilemas da arte moderna perderam sentido, o fato é que a literatura se reaproximou da narrativa convencional, em que há uma oposição entre o narrador e os fatos objetivos que ele narra.
Um ótimo exemplo é o primeiro capítulo do romance "Enduring Love" (Amor Duradouro), do inglês Ian McEwan, que o caderno Mais! publicou no domingo. Traduzido pelo ensaísta Arthur Nestrovski, que tanto tem contribuído para divulgar a literatura anglo-americana entre nós, esse capítulo pode ser lido como um conto à parte.
Mesmo na melhor literatura modernista há uma sensação de gratuidade, de não ter o que contar, de vazio. Nesse texto, McEwan teve a felicidade, rara em qualquer época, de conceber um episódio de tal peso objetivo, de tamanha urgência e inexorabilidade, que é quase inacreditável que ele não tenha por modelo um fato real.
Quando o assunto se impõe de maneira assim cabal, a literatura pode reassumir sua função descritiva sem receio de banalidade ou redundância. Armado o diagrama de forças de "Nós ou Eu" (esse é o título do conto), mantidas em equilíbrio precário e terrível, não há mais o que inventar, como se os fatos ditassem a narrativa.
O episódio não dura mais que alguns minutos. O narrador e sua mulher estão no campo, num dia ventoso, sentados em torno de um piquenique a dois, quando ouvem um grito. Não longe dali, um homem tenta controlar um enorme balão; ao correr em seu auxílio, o narrador vê outros três homens que correm para o mesmo ponto.
Chegam praticamente juntos e, enquanto agarram as cordas na tentativa de manter o balão no solo, constatam que dentro da cesta está um menino, paralisado de terror. Os cinco desconhecidos gritam ordens a esmo, mas não há tempo para deliberar um plano comum, embora qualquer plano, desde que adotado, fosse bom.
O vento recrudesce, o balão sobe dois metros acima do chão, os homens ficam pendurados por alguns instantes até que um deles não aguenta e se solta, o que faz o balão saltar mais dois metros; em frações de segundo, uma sequência "logarítmica" de cálculos morais se processa na mente do narrador e ele também desiste e despenca.
Todos caíram, mas ao se levantarem vêem que um deles continua preso à corda, seu corpo agora um palito no céu. Conforme a praxe, vamos omitir o desfecho dessa parábola que leva a moral a extremos capazes de abarcar, como nota o narrador, nada menos que o drama dos mamíferos: o que reservar para si, o que conceder ao outro.

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