São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 1997
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Discos trazem história da humanidade

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERKELEY

"Earthling" significa, ao mesmo tempo, habitante da Terra, homem mortal e pessoa mundana.
Essa é a nova peça que David Bowie quer pregar no mundo -e está conseguindo, mais uma vez. Sim, por trás de todos os personagens, todas as fases e guinadas na carreira de Bowie, sempre está lá, rindo de tudo e de todos, o "Laughing Gnome" (gnomo risonho), título de uma faixa de seu primeiro disco e talvez seu alter ego mais completo e poderoso.
David Bowie é só um truque de David Bowie, mas é por isso que a gente gosta.
Música pop é um exercício de paródia e simulação. Teve lá seu período de inocência coletiva, onde nasceu o mito da "autenticidade", ambos enterrados pelo "Sgt. Peppers" dos Beatles, e volta e meia permite surtos de inocência para se renovar.
No meio desses surtos ocasionais, vive de um equilíbrio entre negócio e arte, cálculo e espontaneidade, autenticidade e cinismo. E David Bowie é um dos artistas mais perspicazes da corda bamba do pop, sobretudo porque nunca escolheu um lado.
Mais do que a longevidade, é a multiplicidade da carreira de Bowie que assegurou seu lugar como inventor, talvez o mais talentoso, dessa empulhação chamada música pop. No caso de Bowie, nem importa tanto a qualidade da música, mesmo porque ele já a fez brilhante ("Hunky Dory", "The Rise and Fall...", "Low", "Heroes"), intragável ("Tonight", "Never Let Me Down"), interessante ("Diamond Dogs"), inócua ("Black Tie White Noise").
O que faz a diferença entre David Bowie e, digamos, os Rolling Stones, é que Bowie experimentou todas -e inventou algumas- as possibilidades contidas, aí não só mais na música, mas em toda a cultura pop: moda, cinema, propaganda etc.
A cultura pop, justamente pelas relações ambíguas entre a indústria e a cultura, pela promiscuidade com o comércio, pela repetição e pela superficialidade, talvez seja um termômetro bastante preciso sobre o espírito dessa época.
Na hipótese (improvável, é claro) de uma catástrofe que destruísse toda a informação sobre a cultura do século 20 e só restasse uma coleção de discos de David Bowie para contar história, os arqueólogos do século 23 não estariam em tão maus lençóis assim. A paisagem que emergiria da música, das fotos e das letras falaria de vaidade, excesso, individualismo, confusão, vácuo. Ou seja, bastante sobre a humanidade no breve século 20.

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