São Paulo, terça-feira, 28 de outubro de 1997
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A candidatura Lula

ANDRÉ SINGER

Tempos atrás, logo após a vitória de Fernando Collor de Mello, o cientista político Guillermo O'Donnell escreveu um artigo nesta página no qual dizia que o PSDB devia assumir a sua vocação centrista.
Afinal de contas, raciocinava O'Donnell, todo país de sistema multipartidário precisa de um centro -e, com o desmantelamento do PMDB, o partido tucano parecia o mais adequado para preencher o lugar.
Na época, ainda marcada pela radicalização entre direita e esquerda ocorrida no segundo turno da eleição de 1989, a análise talvez tenha soado demasiado hipotética.
Ninguém poderia imaginar que, quase três anos depois, Collor sofreria um impeachment, sendo substituído por Itamar Franco, que, por sua vez, iria organizar um ministério centrista com a participação decisiva do PSDB. Por obra e graça de variáveis ainda não controláveis pela ciência da política, o vaticínio de O'Donnell realizou-se antes do esperado.
O resto todo mundo sabe. Fernando Henrique Cardoso costurou uma aliança com a centro-direita, representada pelo PFL, e, a bordo do Plano Real, inaugurou o primeiro governo de centro legitimado pelas urnas desde Juscelino Kubitschek.
A batata quente passou, então, para as outras forças políticas -leia-se as de esquerda e as de direita. Como se rearticular diante de um centro dominante? Essa se tornou a pergunta decisiva tanto para o PT quanto para o PPB.
A direita optou pela estratégia de criar, com a candidatura de Paulo Maluf ao governo do Estado de São Paulo em 1998, uma base sólida na principal unidade da Federação. A partir de São Paulo, a direita pretende estar em condições de disputar a Presidência da República em 2002.
Para o PT, no entanto, o problema é mais complicado. Com poucas chances na disputa estadual paulista, o partido tem na eleição presidencial de 98 a chance de prosseguir a acumulação de forças iniciada em 1989.
Naquele ano, Lula teve, no primeiro turno, 16% dos votos. Em 94, obteve 22%. Apesar da decepção com a derrota, trata-se de uma votação extraordinária, levando-se em conta o conservadorismo do eleitorado e a importância do programa de estabilização.
Lula sabe que o crescimento do PT a longo prazo depende não dos vaivéns da economia, mas da conquista de bases regionais, de experiências e êxitos administrativos. Por isso, insiste em que uma nova candidatura sua depende de o partido dispor-se a fazer alianças nos Estados.
Será um caminho árduo: implica aceitar, na qualidade de aliados, políticos comprometidos com esquemas de poder que o PT nasceu para contestar. Em que medida isso vai desfigurar o partido, que muitos já julgam irremediavelmente afastado dos românticos ideais sob os quais se formou?
A pergunta não tem resposta simples, mas vou arriscar um palpite. O PT tem diante de si uma tarefa gigantesca, que é dada pela própria estrutura do país. Trata-se de promover uma agressiva política de redistribuição de renda, capaz de começar a dar condições materiais de dignidade ao enorme contingente de pobres brasileiros que está aquém dela.
As resistências a uma política dessas são e serão imensas, a começar pela própria resistência subjetiva de uma parcela dos pobres a correr o risco de mudanças que ameacem a ordem. Medo, aliás, bem compreensível, uma vez que numa sociedade de estamentos -embora sem estatuto jurídico, como a brasileira- a casta dos pobres não usufrui do recurso à conciliação interelites quando a briga fica feia.
Em face do tamanho da empreitada, ouso afirmar que, se o preço do crescimento é compor-se -o que não significa fundir-se e, portanto, não quer dizer abrir mão da crítica- com forças políticas diferentes, vale a pena corrê-lo, e Lula deveria candidatar-se para dar prosseguimento a um projeto cujo sentido vai muito além da eleição em si.
Parodiando O'Donnell, diria que o PT precisa assumir o espaço de oposição competitiva à esquerda que o sistema multipartidário brasileiro comporta e não regredir ao tempo das anticandidaturas.

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