São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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FHC aponta novo limite à ação dos Estados nacionais

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

O presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, reconhece que a globalização "limita efetivamente o âmbito de ação dos Estados nacionais".
Primeiro como ministro da Fazenda e agora como presidente, o sociólogo está na posição ideal para avaliar até que ponto a teia de relações e acordos internacionais reduz as possibilidades de cada governo impor as regras.
Ele vai ao extremo para mostrar como a integração econômica esvazia o poder dos Estados nacionais: "Os países europeus estão discutindo uma moeda única. Moeda única significa obviamente que os Bancos Centrais não vão ter mais capacidade de definir a taxa de câmbio. É um instrumento de defesa de certos setores da economia que os Estados nacionais perdem".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o presidente.

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Folha - Um dos conceitos mais difundidos sobre globalização diz que ela provoca uma perda de capacidade de os Estados nacionais executarem políticas fortes. Alguns até acham que tendem a desaparecer de alguma maneira. O sr. concorda com esse conceito?
Fernando Henrique Cardoso - Ela limita efetivamente o âmbito de ação dos Estados nacionais. De todos. Isso é que é o mais curioso, porque no passado essas limitações incidiam sobre os países subdesenvolvidos, dependentes. Agora, não, é mais amplo. Por quê? Nenhum Banco Central, nem o Banco de Compensações Internacionais (o banco central dos bancos centrais), consegue controlar essa massa de recursos. É realmente um processo que limita a capacidade das instituições existentes, tanto as nacionais quanto as internacionais, de lidarem com o fenômeno. Agora, essa limitação é dinâmica.
É claro que os Estados nacionais e as entidades internacionais reagem à nova situação e procuram então colocar em novo patamar os seus limites, avançar no sistema de controle de decisões. Mas que limita, limita. Ainda mais especificamente no caso da Europa. Os países europeus estão discutindo moeda única. Moeda única significa obviamente que os bancos centrais não vão ter mais capacidade de definir a taxa de câmbio. É um instrumento de defesa de certos setores da economia que os Estados nacionais perdem. Por outro lado, estão se constituindo outros instrumentos.
Eu conversei com o Prodi (Romano Prodi, primeiro-ministro italiano). A Itália vai ter que se ajustar. Bom, isso é uma limitação, mas, se não fizer isso, ela também perde em termos de competitividade com os outros países europeus. É uma limitação, então, que pode resultar num acordo positivo, e eles não vêem a questão com os olhos da preocupação do Estado nacional, vêem com os olhos da população. Vai melhorar a situação e a Itália vai ter mais chances.
E não acredito que vá desaparecer o lado nacional. Na Europa, tem outra tendência: a volta do regionalismo, na Espanha, Itália... Na Alemanha, não creio. Então haverá uma coisa curiosa que não era pensada: as diferenças culturais aparecem com mais força também. Então, não acho que essa globalização seja o fim da história, o fim do Estado. Essas são visões um pouco simplistas do processo, precipitadas. A política renasce de outra maneira.
Folha - Uma outra crítica, menos consensual do que a anterior, é de que o Brasil não está se integrando, o mundo é que está engolindo o Brasil.
FHC - É uma velha discussão.
Folha - E tem a frase do Otto Lara Resende de que o Brasil vai chegar ao Primeiro Mundo para fazer a faxina.
FHC - Eu prefiro uma frase do (Giorgio) Napolitano (atual ministro do Interior da Itália). Ele disse o seguinte em uma entrevista: o problema não é saber se existe ou não internacionalização, o problema é saber se eles vão nos internacionalizar ou nós nos internacionalizaremos. Essa frase já tem uns 10 ou 15 anos, repeti muitas vezes, porque eu a achei boa.
No governo Geisel, que foi talvez um governo que teve uma política, mas ainda embasada na idéia de autarquia, nós todos criticamos a chamada plataforma de exportação, que eram os países do sudeste da Ásia. Nós dizíamos que aquilo era o fim. Não se percebia que era um sinal de que o comércio internacional ia ter uma dinâmica muito forte. Nós no Brasil continuamos apostando no mercado interno. E é claro que, num país continental como o Brasil ou os Estados Unidos, sempre o mercado interno vai ser muito mais importante do que o mercado externo do ponto de vista de volume.
Mas nós não percebemos naquela época que estava havendo uma mudança e que nós tínhamos que escolher áreas, nichos, onde pudéssemos participar mais ativamente do mercado internacional.
Ainda hoje, quando você olha a pauta de exportação do Brasil, vê que ela é pouco dinâmica. Então, o comércio internacional cresce com uma velocidade grande e a nossa participação nele não. Isso não é só uma questão de política de governo. Como temos um mercado interno grande, o nosso empresariado se acomoda e tem lucros mais facilmente no mercado interno.
Então, você tem que fazer um grande esforço para que haja uma abertura de nichos no mercado internacional.
Folha - Mas quais seriam os nichos que o sr. vê mais adequados para o Brasil?
FHC - Nós temos que preparar a nossa produção não só para exportar. É para concorrer aqui dentro com os importados. São as duas coisas ao mesmo tempo. Concorrer, ou seja, melhorar a qualidade da produção. Já estão importando equipamento etc., muito bem. Agora, um país, para poder ter viabilidade de longo prazo, ele tem que produzir coisa que agregue valor. Você olha nossa pauta de exportação, ela é composta basicamente ainda de produtos primários.
Eu não quero dizer com isso que nós devamos não olhar para esses produtos. Até pelo contrário. Eu acho que o Brasil ficou no pior dos dois grupos, porque industrializou para dentro e descuidou um pouco da produção agrícola. Os Estados Unidos têm uma produção e uma exportação agrícola enormes. Nós temos que ter também aqui. A questão, realmente, é onde você agrega valor.
A gente pode ganhar tempo com essa produção primária para que você possa avançar mais onde agrega valor. Aí você tem várias áreas, como, por exemplo, a indústria do espaço. O Brasil tem uma posição estratégica fantástica que é a base aérea de Alcântara, a base de lançamento de satélites. Tem propostas bastante importantes chegando aqui de utilização da base e da formação e ampliação de uma produção local da indústria de espaço.
Folha - 2005 acabou virando uma data cabalística, porque é a data fixada tanto para a conclusão da Alca como para a zona de livre comércio entre Mercosul e Europa. Se o sr. pudesse fazer uma avaliação, mais como sociólogo do que como presidente, o que imagina em 2005? A Alca estaria pronta ou antes se abriria a zona de livre comércio com a União Européia ou em vez delas a Alcsa, a área de livre comércio da América do Sul?
FHC - Eu acho que a Alcsa, certamente. Eu vejo com mais facilidade essa integração aqui. É mais difícil com a Europa. Nós vamos fazer força para que isso aconteça. Também na Europa há um componente político na relação Mercosul-União Européia. Eles estão se preparando para ser um apoio importante. Onde for possível avançar, deve-se avançar. Agora, onde não for possível, tem que haver compreensão, tem que dar tempo.
Não há dúvida nenhuma que o Brasil vai ser duro nisso. E acho que a estabilidade política e até social do continente depende de uma relação não tensa entre Brasil e Estados Unidos. Nós devemos lutar por esses objetivos: uma relação não tensa e com conteúdo também extramercado na jogada. A internacionalizaçao trouxe o crime internacional e organizado. Lavagem de dinheiro, narcotráfico. É um problema que, se não houver um relacionamento correto entre o Brasil e os Estados Unidos, complica muito.
Folha - Há uma discussão se se vai chegar a um mundo sem fronteiras. Há até quem proponha 2020 como o ano para que todas as fronteiras comerciais desapareçam. Em sua opinião, o que vai acabar prevalecendo, fortalezas regionais ou mundos sem fronteiras?
FHC - Eu acho que nós vamos ter sub-blocos, mas não vão ser fechados. Não tem como fechar por causa dos centros produtivos. A revolução é o sistema produtivo. Ela tem a ver com a telemática, com a informática, a informação imediata e simultânea e com o fato de que você pode maximizar em nível planetário o seu sistema produtivo. Isso é um dado da realidade. Quer dizer, é um novo tipo de produção que não é só industrial, mas que tem como espinha dorsal os meios de comunicação instantânea e informática. Você pode controlar a produção da sua empresa a não sei quantos milhares de quilômetros de distância e ter informação on time. Isso não vai mudar. Então isso não tem como você fazer barreiras, porque elas caem. Mesmo barreiras cambiais caem. Manda moeda para cá e para lá.
Nós temos que preparar a população para ter um amplo espectro de acomodação às novas funções. Para ter um espírito de mobilidade que nós não temos. Os americanos têm, os europeus têm menos que nós. Então, isso requer, e essas coisas estamos fazendo, botar computador na escola primária, ter um tipo de formação profissional de outra natureza, mudar os currículos, ter mais coragem para mudar o ensino universitário.

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