São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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A americanização de 1917

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
DA REDAÇÃO

A história da Revolução Russa e da União Soviética está sendo recontada de acordo com a visão dos vencedores da Guerra Fria. Pesquisadores ligados ao Executivo e ao Legislativo dos Estados Unidos têm agora o privilégio de escrever sobre um Estado que já não existe.
A Editora Record está lançando no Brasil dois livros de historiadores que integram a "intelligentsia" governamental dos EUA.
"História Concisa da Revolução Russa" é obra de Richard Pipes, professor da Universidade Harvard que dirigiu o grupo que assessorava o Conselho de Segurança do governo Ronald Reagan -o mais anticomunista dos recentes presidentes dos EUA- sobre União Soviética e Leste Europeu.
"Beria - O Lugar-Tenente de Stálin", escrita por Amy Knight, pesquisadora da Biblioteca do Congresso, é uma biografia de Lavrenti Beria, burocrata-símbolo do regime soviético sob o governo Josef Stálin (1879-1953).
Beria, nascido na Geórgia em 1899 e executado em 1953 após perder a corrida para suceder Stálin, ganhou posições atuando na polícia política, substituindo os líderes comunistas de 1917 após os expurgos ditados pelo Kremlin, e chefiou o programa da bomba atômica soviética.
Pode-se dizer que o livro de Knight dá continuidade ao de Pipes. O primeiro capítulo de "História Concisa" chama-se "A Rússia em 1900". Pipes discorre sobre a história da revolução até 1924, quando morre Lênin. Beria é fruto da vitória da burocracia sobre os revolucionários de 1917 na disputa pelo poder após esse fato.
Se não simpática a Beria, a biografia tenta "contextualizar" seu papel no coração do Estado totalitário soviético. Enxerga nele uma figura capaz de promover uma desestalinização mais radical que a de Nikita Kruschov. Ao tentar vê-lo com bons olhos, mas não podendo elogiá-lo, Knight cai na própria armadilha: numa mesma página, afirma que a produção nos campos de trabalho forçado aumentou graças a um incremento na ração e que houve um corte no fornecimento de alimento.
Uma das teses centrais de Pipes (leia entrevista à pág. 5-13) é que a revolução de 25 de outubro (no calendário russo, então 13 dias atrasado em relação ao ocidental) de 1917 na realidade não passou de um golpe. A opinião é, aliás, compartilhada por Knight.
Pipes se baseia no fato de que o levante dos guardas vermelhos foi planejado com 15 dias de antecedência pelos bolcheviques. Ele também lembra que Trótski preferia que o Segundo Congresso dos Sovietes, marcado para o dia 26, tomasse a decisão (Pipes não tem nenhuma simpatia por Trótski, diga-se). O comando bolchevique, entretanto, preferiu agir antes.
Os conselhos populares, que dividiam o poder com a Duma, o parlamento, referendaram uma situação que já estava consolidada.
Essa posição é contestada por estudiosos brasileiros ouvidos pelo Folha. O erro, na opinião do ensaísta Boris Schnaiderman, é definir um processo a partir de um fato. "É um absurdo falar em golpe de Estado. O mundo mudou após a revolução. Surgiu algo completamente diferente do desenvolvimento capitalista", diz o autor de "Os Escombros e o Mito".
Atendo-se ao período anterior à ascensão bolchevique, Boris Fausto, professor de história da USP, também classifica o período como revolucionário. "Há um processo de mobilização entre fevereiro (a revolução de 1917, que derrubou o tzar) e outubro."
Leandro Konder, professor de filosofia da PUC do Rio, identifica o problema no presente: "Ver a Revolução Russa como um golpe é analisar um fato passado com os olhos de hoje. É preciso respeitar a especificidade da época".
Essa leitura de Pipes não é nova. Os adversários dos bolcheviques, os social-democratas mencheviques e os socialistas revolucionários, já classificavam o outubro como um golpe.
Para Pipes, a ascensão dos comunistas é, na verdade, uma revolta meticulosamente organizada por um grupo que só pensava no poder. Daniel Aarão Reis Filho, da Universidade Federal Fluminense, que também lança livro sobre a Revolução Russa (leia texto ao lado), embora não negue características golpistas, prefere vê-los de outra forma: estavam na crista de uma onda não criada por eles.

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