São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O TROPICALISMO NO PODER

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Trinta anos depois de ter dividido o país com "Alegria, Alegria" -a primeira canção tropicalista, que unia marcha-rancho a guitarras elétricas e introduzia a Coca-Cola na música popular-, Caetano Veloso lança "Verdade Tropical", livro que mescla memória e reflexão, e recobre um período particularmente intenso da história cultural do país.
Saudado em acrítico uníssono pela imprensa e TV, o volume, de 524 páginas, está para o tropicalismo assim como "Lanterna na Popa", do economista Roberto Campos, está para o liberalismo: é a um só tempo revisão e coroamento da posição hegemônica que seu autor passou a ocupar na cultura brasileira, deixando a sensação de que o movimento por ele liderado nos anos 60 inaugurou o "fim da história" de nossa modernidade cultural. O livro, nascido do convite de um editor norte-americano, a partir de um artigo sobre Carmen Miranda publicado pelo jornal "The New York Times", não é uma peça ensaística, apesar da linguagem muitas vezes paraacadêmica. Não é tampouco uma obra literária, ainda que alcance elevação narrativa e aspire a lances proustianos.
A extensa e detalhada rememoração, recheada de explicações didáticas com vistas ao leitor neófito, é apresentada linearmente, em capítulos que cobrem dos anos da infância, em Santo Amaro da Purificação, ao período imediatamente posterior à volta do exílio londrino. O leitor menos interessado no universo íntimo do autor encontrará passagens maçantes, mas os que nutrem essa curiosidade, embora possam se deparar com fatos já conhecidos, descobrirão relatos inéditos. Ali estão as amizades formadas na juventude baiana, os primeiros contatos no Rio e São Paulo, as relações pessoais com outros protagonistas da cena cultural, a descrição de ambientes e revelações sobre o consumo de drogas e inclinações sexuais -que incluem considerações sobre a prática "tardia" da masturbação, a partir de uma frustrada tentativa no cárcere.
Ali estão também esquadrinhadas as influências que permitem divisar a árvore genealógica da tropicália, de Orlando Silva e João Gilberto a Glauber Rocha e José Celso Martinez Correa, passando, entre outros, por Rogério Duarte, Duda Machado, José Agrippino de Paula e os poetas concretos.
Memória e interpretação frequentemente entrelaçam-se, o que faz com que o livro traga, ao lado de vôos mais prolixos, pequenas células de pensamento, que adornam com perspicácia -e às vezes uma nota de exibicionismo- o fato cru narrado.
Ao estrato propriamente biográfico, que culmina com uma densa descrição da passagem de Caetano e Gilberto Gil pelas prisões do regime militar, corresponde uma dimensão reflexiva, cujo fulcro é a idéia de que a bossa nova, tal como formalizada por João Gilberto, erigiu um paradigma insuperável para a edificação da modernidade cultural brasileira.
Essa espécie de missão civilizatória dos bossa-novistas esteve, segundo o autor, na base e no horizonte do tropicalismo: "Ter tido o rock'n'roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos de nossa formação -e, em contrapartida, ter tido a bossa nova como trilha sonora de nossa rebeldia- significa para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo".
A figura de Caetano, hoje uma unanimidade, incensada de Ipanema ao Planalto Central, disposta a exibir seu aburguesamento material em revistas de novos-ricos, representou naquele período um vigoroso divisor de águas, que se projetou das fronteiras da canção popular para as discussões sobre o comportamento, a militância e os rumos mais gerais da cultura brasileira.
Gostar ou não gostar do autor de "Tropicália" -mesmo para a minha geração, que entrou na universidade no início dos anos 70- não se resumia a uma simples manifestação do gosto musical: a decisão implicava uma opção política, cultural, existencial. E havia forças poderosas a confrontá-la, tanto entre o establishment aderente ao regime quanto entre aqueles que tratavam de derrubá-lo.
Afinal, o que fez Caetano para alcançar essa posição? Conseguiu sintetizar, com talento e intuição, no campo magnético da música popular, as energias criativas que impulsionavam a modernização da cultura nos anos 60. Os tropicalistas pretendiam retomar e levar adiante a "linha evolutiva" bossa-novista, esmaecida pelo advento do golpe militar, que acentuou a politização reativa da canção (e da cultura), afastando de cena o barquinho, o sorriso e a flor.
Não se tratava de fazer bossa nova, no sentido estrito, mas de retomar sua equação, essa também abafada pelo dogmatismo nacionalista, pelas estratégias da militância nacional-popular e pelas leituras distraídas ou oportunistas (à esquerda e à direita) das influências norte-americanas.
Os tropicalistas usaram, para isso, a tática de confrontar elementos modernos com arcaísmos e cafonices, compondo um painel crítico e sincrético, no qual guitarras e zabumbas, rock e seresta, bossa e palhoça comentavam-se mutuamente e criavam imagens estilhaçadas daquilo que o poeta Décio Pignatari chamou de geléia geral brasileira. Essa atitude juvenil e radicalizante, potencializada pela aproximação entre meio musical e universidade, numa atmosfera de forte politização, despertou a desconfiança do poder e provocou um conturbado questionamento de certos pressupostos e preferências da intelectualidade de esquerda do período.
Rigorosamente, porém, grande parte da plataforma tropicalista já se tornara realidade em manifestações que antecederam a eclosão do movimento, cabendo a seus protagonistas, em certo sentido, reinventar a roda num ambiente de alta voltagem e concentrador de atenções -o da MPB-, que ensaiava àquela época um passo regressivo.
Antes de "Alegria, Alegria", além da bossa nova, que já elaborara um produto brasileiro e moderno "de exportação", o Cinema Novo já radicalizara, com Glauber Rocha, o salto qualitativo em relação à chanchada e às produções convencionais da Vera Cruz; a poesia concreta lançara seu "Plano-Piloto", em diálogo com vanguardas internacionais; as artes plásticas trabalhavam em experiências formais radicais; e o rock e a Jovem Guarda (o então iê-iê-iê) estavam em cena com suas guitarras, demonstrando que a música jovem de consumo internacional aclimatava-se ao país. Nada disso diminui a grandeza do gesto tropicalista, mas deveria servir para relativizar, no atual ambiente, acrítico e apologético, as mitificações vanguardistas em torno do caráter "inaugural" do movimento -que não foi um raio em céu azul, tampouco uma luz solitária num meio cultural em trevas.
Deveria servir, também, para iluminar outros aspectos da produção dos seus compositores, certamente mais valiosos do que a exterioridade espalhafatosa de suas inclinações "revolucionárias" -fruto, em boa medida, de uma "estratégia de lançamento" (a expressão é de Caetano) que teve no empresário Guilherme Araujo um brilhante articulador mercadológico, da escolha das roupas à encomenda explícita de uma canção que utilizasse o lema "é proibido proibir".
É a qualidade da intervenção que, de fato, justifica a eleição de Caetano como grande artista brasileiro e o destaca no panorama das últimas décadas. Qualidade que se manifestou na capacidade não apenas de perceber as possibilidades de universalização do que se processava no âmbito de seu ofício, como também de fazê-lo num plano elevado de repertório, instaurando no campo da música popular procedimentos e discussões tradicionalmente vinculados à alta cultura.
A renovação radical da letra, a reinvenção da canção, a destreza no uso do singelo e do complexo, a liberdade engenhosa diante do estrangeiro e da tradição, que permitiram uma superação convincente da diluição da segunda fase da bossa nova e da canção militante, tudo isso realizado com vocação poética e inteligência estética acima da média faz de Caetano -não bastasse simplesmente seu canto- um caso à parte. Nada, porém, serve para obscurecer a evidência de que, 30 anos depois, a herança tropicalista vai virando suco e candidatando-se a engrossar, como traço cultural dominante, o contente dendê ideológico do liberal Brasil pós-utópico.
Que esse caminho consagratório tenha sido percorrido no mesmo sentido pela Teoria da Dependência -e que ambos tenham-se encontrado, afinal, com as formulações outrora "americanófilas" de Roberto Campos- é uma ironia que poucos poderiam antever. Ironia comparável -ainda que esta simbolicamente bela- ao fato de Caetano ter sido convidado a revisitar Londres, a cidade do desterro, na comitiva presidencial, em dezembro.
Se a interface do tropicalismo com a experimentação ainda serve de estímulo para jovens artistas, sua face "vitoriosa" é convocada por outros tantos para endossar o rebaixamento estético e a vulgarização comercial das antigas premissas.
Talvez fosse esse mesmo o destino inelutável do movimento, num contexto de crescente desmobilização ideológica e normalização da cultura nos limites do mercado.
Nos anos 60, Caetano podia falar a partir de um território móvel e pouco estruturado, ainda relativamente "artesanal" e bastante permeável ao intercâmbio com o sistema artístico e intelectual de vanguarda. Hoje, contudo, a realidade é outra.
A indústria cultural consolidou-se, o Brasil é o sexto mercado fonográfico do mundo, possui uma das mais poderosas redes de TV do planeta e a atividade a que os tropicalistas se dedicam passou a ser chamada de "show-biz". Nenhum homem, obviamente, nem mesmo com os conhecidos dotes para a divindade ostentados por Caetano, poderia por si só suplantar esse peso objetivo e controlar suas consequências. Apenas as coisas mudaram, acomodaram, sedimentaram.
Talvez seja uma ingenuidade juvenil tardia exigir dos ex-tropicalistas que o arco do informismo mantenha-se teso, no momento em que se encontram no cume do poder cultural. É, ainda assim, incontornável a sensação de que em "Verdade Tropical" ele é afrouxado. Se o livro demarca diferenças, o faz num clima de diplomática distensão, em tudo adequado ao grande consenso que se formou em torno de seu autor.

A obra: "Verdade Tropical", de Caetano Veloso. Ed. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 524 págs. R$ 27,00.

Texto Anterior: Francês estréia em "Autores"
Próximo Texto: Sem mentira não se vive
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.