São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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A crítica agressividade de Dario Fo

GIANNI RATTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Acima do bobo ou maninelo, mas confundido às vezes com ele, estava o jogral. O jogral era conjuntamente instrumentista, bailarino, cantor e até improvisador." Alexandre Herculano, "O Monge de Cister", cap. 2, pág. 256

"L'Osservatore Romano", o importante cotidiano do Vaticano, noticiando o acontecimento, lamentou que o prêmio -depois de ter sido conferido a personalidades italianas como Pirandello, Carducci, Pascoli, Grazia Deledda e Quasímodo- tivesse agraciado um "giullare", atribuindo evidentemente a este substantivo o sentido pejorativo.
Esta implicância católica está relacionada às críticas hilariantes que a "commedia dell'arte" lançou indiscriminadamente sobre os poderosos da religião -padres, banqueiros e pontífices; implicância que, nos séculos 15 e 16, levou, pelas proibições, ameaças e castigos, os cômicos da rua a emigrar para países estrangeiros.
Hoje, Dario Fo, epígono genial daqueles comediantes, é perseguido por processos reacionários que funcionam como uma extraordinária mídia para a sua atividade criativa aplaudida no mundo inteiro.
Conheci Dario em Milão, onde ambos trabalhávamos no campo do teatro, eu como cenógrafo, e ele, com a belíssima Franca Rame, protagonista de espetáculos satíricos, de musicais, autor de scripts de cinema, ator, figurinista, diretor, coreógrafo e, finalmente, autor engajado, crítico mordente e ativista incansável. Os italianos são mestres em agressividade crítica: lembrem a ironia vingativo-corrosiva do Inferno de Dante, a visão duramente satírica de um Maquiavel, o linguajar agressivo de um Ruzzante, a postura coerente da "Commedia dell'Arte", cujo lema "Castigat ridendo mores" acabaria levando seus atores-autores para um exílio brilhante.
"Commedia dell'Arte": uma das mais importantes faces da cultura italiana. Nascida na rua, viva de uma vitalidade crua, exuberante de uma comicidade às vezes até escatológica, violentamente antiacadêmica, generosamente contestatória, ataca sem piedade médicos, militares, prelados, nobres e católicos, banqueiros e negociantes, hipócritas e carolas. Ela mesma é a continuação e a consolidação da tradição da farsa medieval que, por sua vez, enraíza-se na "atellana" latina. Poderia passar impune numa sociedade violentamente classista, ancorada no poder econômico e numa "religião" hipócrita e capitalista?
Todo o fuzuê em volta de ser ou não ser Dario Fo um literato deriva, parece-me, da mesma recusa formulada pelos acadêmicos humanistas dos séculos 15 e 16. Mas, fato curioso, literatos -parece- de algum valor e importância (Shakespeare e Molière, por exemplo) alimentam-se dessa "antiliteratice", apoderam-se dela e a levam aos mais altos níveis qualitativos. O cordel, a meu ver, é tão importante quanto a poesia de João Cabral, a música de Pixinguinha é digna de Bach, Vitalino não deve nada a Brecheret; o africano que diariamente vivenciava o nascer e o pôr-do-sol juntamente com todo o povo de sua aldeia é, sem que ninguém o obrigue a isso, muito mais místico do que uma reunião oceânica na Praça São Pedro. Este povo, também, como seus idealistas atores andarilhos, será exilado de sua aldeia pela brutalidade capitalista das madeireiras desmatadoras, cujos donos certamente não deixam de frequentar a domingueira missa.
Mas o que, afinal, é literatura?
Literatura (não pretendo que meu ponto de vista seja compartilhado) é uma componente que integra as idéias e o estilo de um autor, sua postura moral, sua visão crítica do mundo, seu lirismo, sua posição política; este autor não deve necessariamente acariciar egos estéticos nem bandolinar em descampados românticos, nem deve se conformar aos cânones de uma sociedade permissiva ou não. Este século de vertiginosas articulações não admite mais condicionamentos rótulos ou modalidades; tenho o maior respeito (ou pena, como sarcasticamente afirmou Dario numa entrevista à RAI) pelos que perderam, mas confesso que, como homem de teatro, me senti premiado, juntamente com as legiões de seres que com sua versatilidade crítica e criativa serviram e servem a causa do homem, tema permanente de uma obra poética que, desde os dramaturgos gregos, atravessa ininterrupta, irreversível e gloriosamente os séculos.
Não sei o que deu na comissão que atribuiu o Nobel a Dario Fo. Acho que um cortejo de "jongleurs", músicos, bailarinos, mimos, atores e injustiçados, seguindo um ditirâmbico Dionísio, deve ter sensibilizado seus juízes, fazendo-os perceber que neste telúrico fim de século as regras são diferentes, outras as cartas: a poesia pede passagem pelas ações e as posturas coerentes de uma vida inteira; a beleza é uma componente da dignidade do homem e a arte não é mais uma complacência hedonista, mas, isso sim, a redescoberta do Homem num universo em que a fome, a miséria, a doença e o descaso de quem detém o poder deveriam estar banidos.
Francisco de Assis, "poverello e giullarde di Dio", foi santificado pela Igreja; o mesmo não poderia acontecer com Dario Fo, "jongleur" do povo, pois o legado cristão que permeia sua obra-vida foi deletado pelos computadores do capitalismo vaticano.

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