São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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A intencionalidade da dor

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O assunto saiu das primeiras páginas, voltemos ao assunto. A morte da princesa Diana provocou uma comoção nacional. Um grandioso funeral midiático foi acompanhado por milhões de pessoas no Brasil. Tempos depois (03/10/97), Valterci de Oliveira, mendigo, foi incendiado num bairro carioca. No mesmo dia foram registrados 15 homicídios no Grande Rio. Em um deles, a atrocidade atingiu o impensável. Um homem de 30 anos invadiu uma casa, matou um bebê, um jovem de 19 e outro de 25 anos e, ao tentar fugir, foi assassinado por populares a golpes de foice. Entrevistado, o chefe da polícia civil respondeu: "Normalmente os casos de homicídio crescem durante o verão". Foi tudo, nem funeral nem luto.
Deixemos de lado o que fala por si. Em vida, nem todos valemos a mesma coisa e, justa ou injustamente, só alguns têm direito a permanecer na memória após a morte. O problema não é discutir o que leva uns a serem lembrados e outros esquecidos. O problema é nossa sensibilidade moderna. Como estamos aprendendo a reconhecer o que deve sensibilizar-nos? Quando devemos ou podemos sentir compaixão pelos que sofrem ou são vítimas de crueldades?
O caso da princesa Diana é esclarecedor. Sua vida teve tudo para excitar a imaginação compassiva. Em primeiro lugar, houve o ingrediente do amor infeliz. Amores malogrados são uma das poucas situações humanas que ainda despertam nossa simpatia e solicitude. Em segundo lugar, ela foi descrita como alguém que se opôs ao poder das convenções aristocráticas em nome da autenticidade sentimental. De novo, outro elemento capaz de evocar cumplicidade ou compaixão. Os que desobedecem por amor podem ser submissos em tudo o mais na vida. Para o heroísmo entre quatro paredes, não existe alma pequena se a dor do amor foi sua pena. Em terceiro lugar, o acidente mortal ocorreu quando a princesa tentava defender sua privacidade de repórteres inescrupulosos. A honra da vida privada merece os riscos de 200 km por hora e, ao que tudo indica, os desafios de uma nova lei de imprensa.
Em suma, a princesa foi apresentada como um Quixote traduzido na linguagem do individualismo contemporâneo. Buscando tenazmente a felicidade privada, terminou morrendo no campo de batalha. Sua vida tornou-se uma metáfora dos Ideais de Eu com que sonhamos e de nossas ilusões morais. Sofrimento por amor, luta contra os poderosos e morte na defesa da privacidade são gestos meritórios que, como em Cervantes, tornam-se derrisórios quando vemos o que se passa ao redor.
O vocabulário da tradição pode tornar-se caricato e vazio ao perder seu suporte sociocultural. Fazendo da princesa uma vítima da desafortunada vida familiar e da opressão da nobreza, os meios de comunicação quiseram seguramente ter uma boa história em mãos para vender. Mas também aproveitaram a chance para redimir a vida que levamos, exaltando valores da vida privada, em forte baixa no convívio social: respeito à privacidade, capacidade de doação, altruísmo, sentido de família e assim por diante.
A versão noticiosa da vida de Diana é uma narrativa compensatória destinada a convencer-nos de que ao lado da mesquinhez existe um mundo feito de bons sentimentos e emoções edificantes. Concordo com o texto manifesto, desconfio da intenção latente.
Vivemos numa sociedade de massas, cujos hábitos, segundo Arendt, reproduzem, "mutatis mutandis", os hábitos das Sociedades de Corte que precederam as revoluções republicanas. No Antigo Regime, alguns indivíduos descobriram o peso da hipocrisia; da superficialidade; da ostentação compulsória, do desprezo por princípios morais; do egoísmo desenfreado; da irresponsável alienação do mundo, e, por fim, do significado de estar só, na presença de uma multidão indiferente. Imaginaram, então, um mundo voltado para o respeito ao indivíduo e ao bem comum.
Neste mundo, público e privado eram a face e o verso da mesma preocupação com a justiça para todos e a felicidade de cada um. Na era das massas, a definição do que é público ou privado tornou-se dependente e subordinada aos interesses do mercado. Foi curioso observar as reações indignadas dos que repeliam a intrusão dos jornalistas na privacidade da princesa. Contrastadas ao dia-a-dia, soavam como frases feitas, sem eco na vida ou na reflexão.
Não precisa muito, basta olhar uma banca de revistas para notar a distância entre o cuidado com a intimidade real e o "apreço" pela individualidade sem brasões. Nas manchetes de numerosos jornais e revistas, nenhum limite é posto entre o mais íntimo das pessoas e a voracidade do lucro: corpos de miseráveis assassinados nas sarjetas urbanas são expostos com as vísceras literalmente à mostra; corpos de jovens, homens e mulheres, são vendidos aos quilos como produto pornográfico; corpos de mulheres de sucesso, independente de posição social, convicção moral ou crença ideológica, são reduzidos à mercadoria sexual e, finalmente, vida de pessoas famosas são vasculhadas à cata de escândalos, tranquilamente consumidos nos pacatos lares tão fortemente abalados com a vida, paixão e morte da princesa.
Não se trata de fundamentalismo moral. Trata-se de escutar o recado claro e direto vindo dos que têm força para criar e impor costumes: não adianta resistir! Nada escapa ao olho e o comando do "Big Brother Business". Na terra do "God Is Money", o primeiro mandamento é "comprai-vos uns aos outros" e ai dos que não puderem cumpri-lo. Estes serão condenados ao anonimato das estatísticas de crimes, desemprego, mortalidade, analfabetismo, fome, enfim, à redundância humana, como são considerados para efeito de cálculos econômicos ou repressão policial.
Pode parecer insensível fazer comentários do gênero diante da morte de uma pessoa. Mas um dos traços da cultura do consumo e do alheamento político é o cinismo com que se defende a privacidade corroída em público pela ganância de seus pretensos defensores e a idolatrização do sentimentalismo em meio à feroz impiedade para com os mais fracos. Sentimentos não são o faro da alma.
Freud reiterou o que a filosofia antiga pós-aristotélica já dizia: existe intencionalidade na dor. Não há razão sem sentimentos e a emoção é parte integral de nossas atividades cognitivas. Sofremos "por algo" que é causa e finalidade de nosso sofrimento e, no ato de sentir, discriminamos perfeitamente o que nos afeta emocionalmente e o que nos deixa indiferentes. Toda dor carrega em si uma visão de mundo.
Dora Carrington, após a morte de Lytton Strachey, escreveu: "A morte, infelizmente, não é incompreensível. É absolutamente fácil de entender". Cada lágrima é um argumento, cada choro uma justificação. Sempre lastimamos o bem perdido ou o que nos falta. Pelo visto, a vida da princesa era um destes bens; pelo visto, Valterci de Oliveira mais os 15 mortos de "um trivial dia de verão" são apenas letra e papel impresso. Confiar nos sentimentos! Sem dúvida. Mas sem esquecer a razão, tantas vezes inconfessável, de nossas melhores sensibilidades.

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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