São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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Um mundo de muitos pólos

VIVIANA BOSI CONCAGH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Duda Machado aporta em seu novo volume de poemas instigando os leitores a se lançarem na viagem difícil de investigação de um escritor em travessia -o que representa um risco de encontros precários, mas desafiantes. Esquivo às demarcações precisas, encontram-se nele vertentes por vezes dispersas na poesia contemporânea, aqui reelaboradas. O nome do livro indica liberdade em relação a programas fixos, como a borda indefinida: ele está fora da onda? Imagem de exílio a procurar a possibilidade de outro ar: "Um desabrigo nos impõe a disciplina/ de construir/ nosso próprio clima".
Trata-se de um poeta que vem amadurecendo na linha da introspecção objetiva, não confessional. Poesia mentada, retrabalha a lição cabralina de construção contida, incorporando o corte concreto da palavra sucinta, mas também admite um discreto coloquialismo, certa aproximação dialogante.
Seus poemas exploram a idéia da ampliação do eu, observa Luiz Costa Lima, girando a câmara do olhar num mundo de objetos disparatados e procurando não se iludir com um falso centramento numa situação de muitos pólos: "Um mútuo desgarre/ desterra as partes/ que parem o mundo".
Sujeito e objeto se distanciaram: os detalhes se emancipam e perdem o vínculo das correspondências universais. Por vezes estranho a si mesmo, escora no olho lúcido o possível ponto de apoio para reconstruir o fio entre interior e exterior, resistindo de várias formas à desagregação. Numa tentativa de encontro e acolhimento, a distância analítica pode ser transformada em ensaio de aproximação: "O olhar que erra e se prolonga/ em busca de sua moradia". Meditativo e urbano, o homem na rua e no ônibus existe na "confluência/ entre passagem e morada", recolhendo memórias, em eco. Valerá a pena procurar a Ilha, fugindo da Cidade Deserta em que somos só vento?, pergunta-se.
Uma poética que sintetiza a experiência em palavras-chaves, com um resultado por vezes intelectualizado em demasia, e, em outros momentos, com leveza e precisão. Como alguém que pintasse tantas vezes uma paisagem que descobrisse, por fim, suas linhas essenciais e alcançasse o traço mínimo, sem perder, no entanto, a textura próxima da granulação da tela, a lembrar os acidentes do terreno. Sutis aventuras da percepção da cor e da sombra. Essa viagem para o mínimo pode sofrer o risco da redução extrema, em que se perde o vigor do concreto -então o poema não agarra mais nada, como o beijo que vem do espaço e não é acolhido, do leque de Mallarmé.
A poesia moderna aceita trabalhar com esse corajoso extremo -forma de estranhamento desreificador. Limite que vai até o sem nome, em que o eu se dissolve na água como no deserto. Viagem que atravessa a negatividade de sentidos, para limpar a experiência. Passar pelo silêncio e pelo não, como uma síntese em movimento: "rumo a um nada extraordinário", a indiferenciar o eu e os objetos, o perto e o distante. Supermímesis, no dizer de Harold Bloom, em que a palavra é reconquistada após sua desconstrução.
Procura o tempo fora da duração mecânica de nossos dias, penetrando na "hora imóvel" de Baudelaire: alumbramento do instante. Lamenta o "fim de um tempo imóvel, perfeito", mas no momento mesmo em que atinge a alegria de se sentir parte da paisagem -como Santos Dummont no balão integra a tempestade- é dominado pela fome de significados, volta o intervalo irônico, a ausência: "Viver também pode/ ser longe// acordar é raro/breve".
Em alguns poemas, ainda se percebe a carpintaria intencional, como um esqueleto exógeno, que expõe procedimentos simétricos "bem bolados" e se reduz a jogos um tanto assépticos. Falta, por vezes, a graça espontânea de quem já superou a marca evidente das ferramentas. Mas, em inúmeros bons momentos, o trabalho traduz-se em fortes concentrações.
Consciente de que o pensamento altera o que vê, percebe que na leitura do cristal projeta a "memória obscura/ (paisagem perdida/ entre informe e ruína)/ ou: a fenda de seus prismas". As indagações do eu infletem o raio do cristal, "a espalhar rasuras/ no lugar do nome". A atenção obsessiva e amorosa das coisas, o desejo de surpreendê-las em si mesmas, aproximam o poeta do cientista que, de tanto descrever minúcias, chegasse à teoria geral dos fatos. Em "Fragmentos para Novalis" considera o desconhecido como suplência do já conhecido: toda aparente completude é só um limiar. Poesia, neste livro, continua sendo "aparição": "aliança entre o mesmo/ e o surpreendente".

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