São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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Cortando na carne

LUÍS PAULO ROSENBERG

Tive que concluir este artigo no domingo passado, antes, portanto da divulgação do pacote fiscal de FHC. Mesmo assim, posso tentar imaginar como a ele se chegou, pois com pequenas variações os processos de ajustes fiscais no Brasil desenvolvem-se conforme a seguinte caricatura.
Tudo começa com uma crise. Externa (como a guerra Irã-Iraque, o calote do México ou o colapso do Sudeste Asiático) ou interna (disparada da inflação, rebelião empresarial contra a carga tributária excessiva, os juros punitivos ou a taxa cambial atrasada).
O ministro da Economia, a pedido do presidente, então encomenda ao seu assessor PhD preferido uma lista valente de cortes, que elimine de todos os corações e mentes a mais pálida dúvida do compromisso governamental com a austeridade.
O infeliz do assessor xiita acredita mesmo que a missão era para valer e comparece à primeira reunião interna do ministro e seus assessores com o cardápio completo: fechamento de ministérios, fim de subsídios, extinção de funções gratificadas, transferência para Estados, municípios e setor privado de todos os serviços públicos regionais prestados pelo governo federal, demissão de inúteis, cortes na Previdência pública e em todos os programas de ação federal remanescentes. O jovem conclui a leitura da lista negra dizendo, orgulhoso: "Dá mais de 3% do PIB de cortes. E nada que dependa da aprovação de qualquer emenda constitucional!"
O silêncio que se segue é sepulcral. Um outro assessor, neto de ilustre prócer do memorável PSD, lembra-se da frase do avô ao sair de fininho de uma reunião partidária em que se havia proposto o rompimento com o governo: "Há propostas que comprometem a gente já por tê-las apenas escutado..."
Coube ao ministro, diplomaticamente, tentar quebrar o mal-estar criado. Elogiando muito o trabalho expedito e pertinente do PhD, confessa estar perguntando a si mesmo se o conjunto de medidas não peca por uma flagrante alienação social, eivada que está de um preciosismo tecnocrático de cortar toda a ação do governo, algo que se supunha enterrado com a ditadura.
Ele nem precisou se responder. Um assessor puxa-saco incumbiu-se de jogar a primeira pedra desancando o infeliz PhD, chamado de "desalmado de quatro costados que não se sentia co-responsável pelo resgate da dívida social". "Economia não é uma ciência exata, 3% ou 1% do PIB, para que exagerar?"
A deixa foi aproveitada pelo responsável pela liberação das verbas dos ministérios gastadores, um senhor que já se havia dado mal em duas ocasiões. Logo no início do governo, contingenciou os fundos do programa que era o ai-jesus da primeira-dama e quase foi transferido para a área de supervisão da quilometragem média obtida pela frota de viaturas federais. Há poucos meses, quase perdia sua gratificação de chefia por ter segurado recursos do ministro mais esguio do governo, um boquirroto que era carne e unha com o presidente e que veio buscar seu dinheiro chutando portas no Ministério da Economia. "A política é a arte do possível", pontificou o barnabé, em dúvida se lera tal pensamento em Maquiavel ou no almanaque do Biotônico Fontoura, enquanto propunha suspender a reunião até o dia seguinte, quando juntos poderiam elaborar um pacote mais condizente com a realidade política ("pacote" é coisa da ditadura, corrigiu o ministro, propondo chamar as medidas de "conjunto harmonioso").
Na reunião seguinte, o destaque foram as intervenções do representante da Receita Federal, que nem sequer havia sido convidado para a anterior. Lembrando que o mundo esperava do Brasil uma manifestação de "esforço" e não de "cortes" fiscais, propunha que se aproveitasse o ensejo para reforçar as burras da União, aumentando alíquotas de impostos existentes, prorrogando a vigência dos temporários e criando alguns impostos fresquinhos que há meses a Receita vinha mesmo pensando em propor ao ministro.
Quando o espezinhado assessor PhD constrangidamente perguntou se sobrecarregar o setor privado com tributos não iria agravar o quadro recessivo, recebeu uma cortada feia do ministro: "guerra é guerra, pô, todos têm que dar sua quota de sacrifício!"
Saiu enfim a proposta que seria levada ao presidente: um esforço fiscal de 1,5%, dos quais 1% adviria de aumento de arrecadação e 0,5%, de cortes a serem definidos junto com o presidente.
Mas na reunião com o presidente, ele lembrou que os cortes vigeriam em ano eleitoral, que o outro partido que lhe apoiava só teria votos nos grotões se o gasto fosse mantido e que ele não era homem de deixar aliados em situação delicada.
Ficou então acertado o pacote que seria divulgado na entrevista coletiva: aumento de impostos conforme proposto pelo ministro e "os melhores esforços" para conter o dispêndio público. Sem fazer tábula rasa das prioridades governamentais, é claro!

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