São Paulo, terça-feira, 11 de novembro de 1997
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O neo-autoritarismo

SÉRGIO PENNA KEHL

Nos meus tempos de universidade, corria entre os estudantes democratas uma piada sobre o radicalismo ideológico de então: depois de definir o capitalismo como a exploração do homem pelo homem, o interlocutor pedia uma definição de comunismo. Diante da hesitação do companheiro, adiantava: "É exatamente o inverso!"
Hoje, os regimes autoritários são estigmatizados por uma larga parcela da humanidade, fala-se muito em neoliberalismo, mas a piada ainda vale diante do caráter dúbio do regime vigente no Brasil.
Será que podemos considerá-lo democrático?
Não acho! Num regime democrático, as oposições são respeitadas e ouvidas, principalmente em assuntos que afetam a economia interna e as relações internacionais do país. Aqui, os críticos são chamados de dinossauros...
Nas democracias, os planos são discutidos e divulgados. Aqui, só há visões meio enevoadas sobre o maravilhoso futuro de um Brasil desenvolvido. O que, aliás, me preocupa muito, já que os desenvolvidos de hoje buscam na famigerada globalização uma saída para resolver seus problemas imediatos e manter, enquanto possível, o consumismo irresponsável.
Que país desenvolvido estará servindo de modelo para o nosso? Os poderosos Estados Unidos, que estão há anos emitindo cheques sem fundos para cobrir seus déficits internos e externos? Cujos recursos naturais não são mais suficientes para manter seus padrões de vida? Que não conseguem absorver nos próprios territórios a poluição que produzem?
Será a maravilhosa Suíça, com seus cofres abarrotados com o ouro do holocausto, da corrupção e do narcotráfico? Ou o operoso Japão, equilibrando-se sobre o gume de uma faca, sem comida, energia e recursos minerais para sustentar as exigências do seu povo? Ou ainda a civilizada Suécia, que tem a sabedoria dos seus 5.000 anos, mas apenas a metade da população da Grande São Paulo?
Ou quem sabe temos aqui um regime socialista disfarçado?...
Não pode ser! E o incentivo ao desemprego? E a exportação das poupanças, suborno disfarçado para reduzir a demanda de produtos nacionais? E o incentivo ao transporte individual? E o aumento do consumo frívolo? E essa brincadeira de mau gosto apelidada de reforma agrária? E a preocupação obsessiva com a saúde do orçamento, mais importante do que a saúde do povo?
E o custo social do sistema carcerário? E as obras projetadas e executadas por brasileiros, com tecnologias e materiais do país, que precisam de empréstimos estrangeiros "para não causar inflação"... E a remessa de lucros, juros e royalties duvidosos para o exterior, que atinge valores astronômicos, desconhecidos do grande público?... E... ? Acho que chega!
Não! Não é socialista. Não é democrático. E, portanto, não é social-democrático. Com o mercado dominado pelos especuladores e as Bolsas transformadas em cassinos, também não é um regime capitalista clássico. Afinal, até eles tinham certas regras...
Então, o que é esse governo?
Esse é, positivamente, um governo autoritário. Sorrateiramente autoritário, porque, embora de aparência liberal, é submisso à ditadura dos tecnocratas e também às ações dos aproveitadores que comandam, com mão de ferro, o sistema monetário internacional.
Porque consegue iludir o povo e dominar os seus anseios com a frágil estabilidade da moeda, a grande mágica aética dos matemáticos, deslumbrados com o poder das suas equações. Homens que têm apenas números nas veias e uma máquina de calcular no cérebro. E que não conseguem avaliar os prejuízos sociais de suas ações intempestivas ou de suas omissões criminosas.
Autoritário sim, porque demagógico, mistificador, dono da verdade indiscutível. E porque não dá senão explicações prolixas e confusas sobre seus atos. Autoritário porque não mobiliza o povo para a redução das disparidades sociais, mas sim para a elitização do consumo, a exibição do luxo e do desperdício e a excitação das reivindicações e atos de violência dos excluídos.
Como numa ditadura cruenta, o Brasil caminha sob o tacão do monetarismo selvagem, perdendo sangue pelos seus ferimentos, alguns irreparáveis, comprometendo um futuro que poderia ser exemplar por seu caráter criativo, ecologicamente equilibrado, conformado à cultura e às questões reais da nossa sociedade e ao temperamento moderado, humano, cristão da nossa gente.
Estamos convivendo, infelizmente, com um novo modelo de governo autoritário: um governo neo-autoritário!

E-mail: skehl@uol.com.br

Site: http://sistes.uol.com.br/skehl

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