São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Longe de toda esperança

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje ninguém se sentiria muito à vontade para referir-se a Proust como fizeram alguns dos seus contemporâneos: "ofensa à verdade" (André Gide), "inseto atroz" (Lucien Daudet), "carne de caça estragada" (René Boylesve), "velha judia maquiada" (Paul Claudel). "Em Busca do Tempo Perdido" tornou-se uma obra meio unânime entre nós, como um achado talismânico da nossa cultura, e seu autor quase "um clima de opinião" do nosso tempo. Mas é um formidável paradoxo que, apesar disso, a sua genialidade, a sua moral e "levada" internas não se tornaram mais óbvias e mais dadas do que antes.
Assim, a geração atual de intérpretes e ensaístas que têm publicado livros recentes sobre "Em Busca do Tempo Perdido", como os autores destes dois livros, traduzidos há pouco no Brasil, parece mais transida de assombro diante da obra de Proust do que os primeiros admiradores do romance. É como se os contemporâneos de Proust tivessem se obrigado a explicar, até para evitar a alvoroçada maledicência em torno do autor, o que a obra não era, e os seus intérpretes de hoje pudessem se dedicar a dizer o que ela é.
O ensaio de Claude Meunier, "O Jardim de Inverno da Sra. Swann", é um exemplo estupendo disso, e, ao contrário do que o título poderia sugerir, ele não é mais um desses tantos livros apanhados pela rama na obra de Proust e compostos com mão de colecionador, capricho de diletante e inclinação de fetichista: os incontáveis livros que há sobre a gastronomia em Proust, sobre as catedrais, sobre a hotelaria da época, os guias das estradas de ferro etc.
As catléias do desejo sexual de Swann por Odette ("Vamos fazer catléia" virou uma privada e pungente anedota entre os dois), os crisântemos da fase do "niponismo" de Odette, os pilriteiros dos passeios e caminhos da infância do Narrador, as flores nas margens do Vivonne, os gerânios do gozo consumado, todos esses espécimes da botânica são tomados por Claude Meunier não como um entulho mais ou menos fanado e fetichisticamente compilado. Mas como um cinturão de metáforas, uma estamparia essencial, um esquema geral de transfiguração, um episódio de consubstanciação, como a evocação mais apropriada dos personagens e ao mesmo tempo como bomba de retardamento pendurada na vida de cada um.
"A botânica", escreve Claude Meunier, que também é romancista e, hoje com 40 anos, vive no interior da França (embora sua prosa até um pouco selvática e nem um pouco cerimoniosa não tenha nada de "França profunda"), "é a ferramenta pictórica impecável de Proust". Da mesma forma talvez que Giotto, como escreveu o próprio Proust, pintou a sua série dos "vícios e virtudes" por meio de uma espécie de textura e carnação elementar das figuras, de escala moral e pictórica básica, o romancista reserva aos personagens quase que a condenação a um gênero específico da botânica.
"Na Busca, ao contrário do que se diz, nada de riqueza psicológica e nada de personagem inteligente senhor de si, em lugar disso uma série de revelações redutoras que produzem destinos esmagadores...", escreve Claude Meunier. É meio irrespirável. Mas ele não deixa de ter alguma razão. "Em Busca do Tempo Perdido", apesar de todo o nosso desejo de heroicizar a trajetória do Narrador, e de arrumar um teor e uma movimentação um pouco salvíficas para o final do último volume ("O Tempo Reencontrado"), não tem nada de romance de formação, no qual o personagem se constitui a partir do que o mundo lhe põe no caminho. No romance de Proust, ao contrário, ninguém aprende muita coisa, não há ilusão abandonada em favor de coisa muito melhor e mais alta, nem "moral aprendida", como escreve Meunier.
O que há é como que a reiteração sagrada, a recitação sublime e sem remédio, a revelação (projetada na tela inigualável da botânica, no caso do ensaio de Meunier) da lei que enlaça os personagens e os condena a repetir os gestos e as paixões que lhes fazem viver e lhes consomem. Como Swann indo encontrar Odette na casa da sra. Verdurin, mesmo sabendo que será alvo de uma rejeição da amante e de um deboche grupal.
Mas então não tem escapatória e o mundo de Proust é feito do mais asfixiante determinismo? Sabemos que não e é o que acaba por mostrar Stéphane Zagdanski no seu "O Sexo de Proust", um pequeno ensaio, inteligentíssimo, e meio "gauchiste" (no sentido mais transgressivo, mais "foucaultiano", da palavra). Ele quer mostrar que apesar da aparatosa homossexualidade de Proust, sua "escrita" é profundamente heterossexual. Proust "era heterossexual na alma, assim como se é circundado no coração", escreve Zagdanski, que já se surpreendeu beijando o romance da mesma forma que seu pai, "oscilando como um metrônomo místico" num canto de uma sinagoga de Paris, fazia com seu livro de orações.
O interesse da formulação de Stéphane Zagdanski não é biográfico, mas está na sua compreensão dessa inversão da "inversão" (a expressão é do ensaísta), dessa "redenção cardíaca das intermitências do coração" que está na origem não só do romance de Proust, mas de toda grande literatura. O romancista triunfa de todo determinismo ao desencadear no interior mesmo do emparedamento em que pôs seus personagens (como na condenação destes aos espécimes da botânica) "uma insurreição perpétua que tem outro nome: ressurreição". Que Swann, Charlus, Orianne de Guermantes, Albertine, Odette surjam consubstanciados em inumeráveis espécimes de botânica, não parece haver problema. Na perpétua ressurreição da obra de arte, isso não significará mais determinismo algum, mas outra coisa.
Como no caso desses dois, a geração mais recente de livros sobre Proust parece dizer que é melhor "deixar de fora toda esperança". Também não parece ser problema, pois o que eles deixam entrever no interior do romance é bem melhor.

As obras
Jardim de Inverno da Sra. Swann , de Claude Meunier. Ed. Mandarim (r. Raimundo Pereira de Magalhães, 3.305, CEP 05145-200, SP, tel. 011/839-5500). 184 págs. R$ 19,50.

O Sexo de Proust , de Stéphane Zagdanski. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, CEP 20031-114, RJ, tel. 021/240-0226). 96 págs. R$ 16,00.

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