São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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Ícones de um iconoclasta

E.M. DE MELO E CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Almada é um iconoclasta construtor de ícones. "Eu pertenço a uma geração construtiva", disse ele logo no início do "Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século 20" (1917). E em todas as suas manifestações criativas ele construiu ícones linguísticos e pictóricos. Tanto isto é assim que o reconhecimento da sua poesia só tardiamente se dá. A poesia de Almada coloca-se deliberadamente fora do código simbólico referencial, prevalecente na poesia portuguesa da primeira metade do século 20 e na qual se inscrevem mesmo os seus companheiros de "Orpheu", Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e até Ângelo de Lima.
Esse reconhecimento só é de fato possível nas décadas de 50 e de 60 (a famosa conferência de Jorge de Sena, que verdadeiramente relê a poesia de Almada, é de 1968), quando surrealistas e experimentais já estavam produzindo poesia icônica verbal e não-verbal, embora num meio hostil e fechado, como era então o de Portugal.
Mas as estratégias verbais de Almada, que datam dos anos 10 e 20 deste século, pouco ou nada têm a ver com o surrealismo e com o experimentalismo, para lá de serem naturalmente suas antecessoras históricas, na tradição do visualismo mediterrânico. E é nos próprios textos de Almada que devemos procurar e entender as linhas com que eles se tecem e destecem.
Uma estratégia da visão
Em primeiro lugar é necessário precisar que a iconização é uma estratégia da visão que estabelece relações reconhecíveis visualmente entre os objetos e os seus signos. Sendo pintor e desenhista, o sistema perceptivo de Almada é predominantemente visual, mas a sua poesia não é uma mera "poesia de pintor" no sentido menor que esta expressão geralmente contém. A poesia de Almada é, em vez disso, uma metapoesia que no código verbal da escrita se inscreve e realiza; que nas palavras encontra os seus materiais de construção, como fica bem patente em "Invenção do Dia Claro" (1921):
"Todos os dias faz anos que foram inventadas as palavras. É preciso festejar todos os dias o centenário das palavras. (...) Há palavras que fazem bater mais depressa o coração -todas as palavras-, umas mais do que outras, qualquer mais do que todas. Conforme os lugares e as posições das palavras. Segundo o lado de onde se ouvem -do lado do Sol ou do lado onde não dá o Sol. Cada palavra é um pedaço do universo. Um pedaço que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o Universo. As palavras querem estar nos seus lugares! (...) Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram todas inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas. (...) Agarrei uma mancheia de palavras e espalhei-as em cima da mesa. Ficaram nesta posição: (...)".
Estamos perante uma teoria-prática da reinvenção do texto: o acaso coloca as palavras nos lugares onde as palavras querem estar e elas dizem o que delas ouvimos segundo o lugar onde estão em relação à luz. O texto que fica em cima da mesa é portanto sinestésico: ouve-se conforme a luz.
A iconologia sinestésica, realizada no código verbal, é então a substância mesma da poesia de Almada: visão + audição + movimento. Leiam-se três das estrofes de "Rondel do Alentejo" (1913):

"Giram pés
giram passos
girassóis
e os bonés
e os braços
destes dois
giram laços
ao luar.

O colete
desta virgem
endoidece
com o S
em vertigem

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete

Também a temática e um ambiente "popular", presente neste e em tantos outros poemas, é outra das estratégias verbais de Almada, esta aliás em concordância com temas recorrentes da sua pintura, como, por exemplo, a Mãe e a "varina" de Lisboa. Mas é na dedicatória do poema "O Menino d'Olhos de Gigante" (1921) que encontramos a sua explicitação: "Dedicatória d'o Menino d'Olhos de Gigante feito com a pretensão de poema universal, na linguagem poética da tonteria popular e com uma posição geográfica portuguesa. Ao Ar, à Luz, ao Fogo, à Terra e à Água, como recordação dos nossos encontros".
Aos quatro elementos da Antiguidade Almada junta mais um que lhe é indispensável -a Luz-, pois é ela que dá visibilidade ao universo e às palavras-coisas de que é feito; palavras que ele, reinventor de palavras, usa num sistema de referências adequado para a comunicação: a "tonteria popular" dum ponto de vista (geográfico!...) português. Não se trata portanto de Poesia Portuguesa (com maiúscula e tudo...), mas sim de um evento linguístico localizado no universo da poesia. Isto porque para Almada "a poesia é a vocação humana de não pôr parcialidade na Vida. (...) É directa. De homem para homem. Acto puro. Filha do momento. Ficou para sempre. (...) Está feita para estontear. A poesia é a linguagem dos iguais dispersos no Tempo. (...) A poesia 'conhece' e não sabe" (de "Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta", 1942).
É esse "conhecer" que é estático e por isso anterior ao conhecimento que o saber proporciona o que Almada busca e ao qual deu também o nome de arquétipos e de "antegrafia", busca esta que lhe ocupou toda a vida.
Almada escreveu predominantemente sobre o VER e assim foi denominado um livro de pesquisas e intuições que deixou inacabado e que só em 1982 foi publicado (Arcádia, Lisboa), organizado por Lima de Freitas.
O que Almada buscava escrevendo era um outro ver: um ver que de Homero se reclama: Homero que, segundo a lenda, era cego. É o ver arquetípico das formas originais e que por isso estabelece a relação, hoje perdida, entre o sagrado e o sensível. Sagrado que é dos deuses; sensível que é dos homens. Só que os deuses gregos eram antropomórficos e reciprocamente os homens da antiga Grécia possuíam o ver claro que é originário e genésico para nós homens de cultura ocidental.
Penso (sinto) que nenhum outro poema de Almada realiza tão bem esta busca estática como "As Três Conversas da Fonte com o Luar", de 1921. O poema é longo demais para poder ser transcrito. No final da segunda conversa diz a Fonte:

"Eu sou assim,
ninguém m'entende
não sei mudar!
Chamam-me Fonte,
eu acho bem,
é o meu nome,
quero-lhe bem...
Se não m'entendem,
qu'hei-de fazer?
Eu sou a Fonte,
estou a correr...".

Além da identificação do nome com a natureza e função do nomeado (este seria o nome divino, segundo Platão, no "Crátilo"), a noção de um correr estático que perpassa no poema é certamente um conhecer antegráfico anterior até a Heráclito. Mas não será também o rio de Heráclito um rio que tal como a Fonte, não pode deixar de correr?
Almada é um iconoclasta construtor de ícones, e nenhum outro poema seu corresponde melhor ao iconoclasta que Almada foi como "A Cena do Ódio", escrito em 1915, mas só integralmente publicada em 1958, com os seus mais de 700 versos de insultos e impropérios dirigidos ao burguês e à burguesia intersupranacional, isto é, global, como hoje se diria. Trata-se de fato de um impressionante poema dramático, de um longo monólogo em que um personagem assumidamente marginal ("Ergo-me Pederasta apupado d'imbecis,/ Divinizo-Me Meretriz, ex-líbis do Pecado"), personagem que personifica toda a raiva do Poeta acumulada em séculos e séculos de marginalização e de incompreensão, num mundo que é preciso criticar radicalmente para que possa ser reconstruído de novo, como era a crença futurista de Almada.
Ler a poesia de Almada Negreiros é, como se pode antever, um exercício arriscado porque, sob a aparência lúdica e por vezes irônica dos textos, existe uma profundeza abissal. Não ler a poesia de Almada Negreiros parece-me, no entanto, conter ainda um risco maior, que é o de privarmo-nos do conhecimento de uma das mais originais poesias do século 20.

Ernesto M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta literário, autor de "Poligonia do Soneto" e "Re-Camões", entre outros.

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