São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997 |
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AS QUATRO MANHÃS PRIMEIRA MANHÃ Quando eu cheguei devia ser tarde, já tinham dividido tudo pelos outros e seus descendentes. Só havia o céu por cima dos telhados lá muito alto para eu respirar e sonhar. Tudo o mais cá em baixo era dos outros e seus descendentes. A terra inteira e o mar e o ar tudo medido dividido tudo a régua e compasso pelos outros e seus descendentes. No mundo inteiro não faltava ninguém depois dos outros e seus descendentes. A terra inteira era estrangeira mais este pedaço onde nasci. Não me deixaram nada nada mais do que o sonhar. Eu que sonhasse! E eu que amo a vida mais do que o sonho e o sonho e a vida juntos mais do que ambos separados e que não sei sonhar senão a vida e que não sei viver senão o sonho hei-de ficar aqui entre os outros e seus descendentes? Eram meus caminhos os caminhos murados só os caminhos eram meus. Só tinham fim os caminhos ao começar outros caminhos. As portadas fechadas as janelas cerradas só os caminhos eram meus. A minha viagem não tinha fim no fim de todos os caminhos. O fim que tinha era outro bem perto de mim em todos os caminhos. Bem perto de mim andava aquele que eu buscava, aquele que não era nenhum dos outros e seus /descendentes, alguém cuja pessoa era eu que não me achava. Apenas uma voz me falava e sabia que eu não era nenhum dos outros e seus /descendentes. E esse que a voz sabia que eu o era me levava pelos caminhos os meus olhos primeiro do que eu e o coração no peito a contar. A voz sabia-o bem e eu para me encontrar. Também vi pelos caminhos lembro-me de quantos também como eu à procura de tantos como eles. Perdidos vão perdidos? não! não achados não achados ainda. Perdidos não estão vão perdidos por se acharem, vão mortos por se verem a si próprios como são. Levam o sonho no ar e o coração a contar as idades que é preciso ter até cada um ser aquele que vai em si. Nascer é vir a este mundo não é ainda chegar a ser. Nascer é o feito dos outros. O nosso é depois de nascer até chegarmos a ser aquele que o sonho nos faz. Já sei de cor os caminhos já sei o que vale a promessa já vejo perfeito no sonho o que me há-de a vida imitar. Mais além e o sonho e a vida libertar-se-ão um do outro em mim! ALMADA NEGREIROS Trecho de "As Quatro Manhãs", de 1915 a 1935 Texto Anterior: Ícones de um iconoclasta Próximo Texto: A guerra do nome Índice |
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