São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
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Almodóvar

ANGE-DOMINIQUE BOUZET
DO "LIBÉRATION"

Numa noite de 1970, uma mulher dá à luz num ônibus vazio, dirigido por um motorista contrariado, em plena Madri franquista. Vinte anos mais tarde, seu filho, Victor (Liberto Rabal), se apaixona por Elena (Francesca Neri), uma jovem drogada.
Mais sete anos e ele sai da prisão, onde foi parar depois de um tiroteio com David (Javier Bardem), um dos policiais que foram prendê-lo no apartamento de Elena. Do tiroteio, David sai paralítico e apaixonado pela garota.
Com seu mais novo trabalho, "Carne Trêmula", adaptação como ele gosta -completamente infiel- de "Live Flesh", de Ruth Rendell, Pedro Almodóvar assina seu 12º filme. Leia a seguir trechos da entrevista com o ex-provocador do cinema espanhol, que confessa seus 47 anos de idade.
*
Pergunta - O filme começa em 1970. É a primeira vez que você evoca o franquismo...
Pedro Almodóvar - Eu o odeio tanto que havia prometido nunca falar dele em meus filmes. Queria fazer como se sempre tivéssemos sido modernos! E frívolos! Seria essa a minha vingança, minha luta.
Eu ainda me lembro daquela situação, eu ficava enterrado em casa. Depois, com o tempo, o medo se foi. Simplesmente, um dia, ao cruzar um policial, percebi que não tinha mais medo da polícia.
Pergunta - E você insiste solenemente, no final do filme, na idéia de que os espanhóis não deixarão o medo voltar.
Almodóvar - Porque estou efetivamente convencido que os espanhóis não permitirão o retorno de algo como o franquismo.
Não teria colocado essa frase se o partido socialista continuasse no poder. Soaria como propaganda. Mas não considero de modo algum que a direita atual seja similar à direita franquista.
Não deixo de ficar arrepiado quando ouço o discurso do filme. Porque a voz que se escuta nele é a de Fraga, que era ministro de Franco e que acaba de ganhar as eleições na Galícia.
Pergunta - Desta vez você fez um filme com dominância masculina...
Almodóvar - Não acredito nestas histórias de filmes masculinos ou femininos, homossexual ou hetero. O negativo não tem sexo. O que acontece ali é que são os personagens masculinos que têm a coragem, a autonomia e a capacidade de decisão que tinham as mulheres em meus outros filmes.
Nesse sentido, é também um filme muito "genital", pois os espanhóis, quando falam, têm sempre a palavra "colhão" (cojones, huevos) na boca. Isso surge na disputa entre David e Victor, onde eles são como duas crianças.
Pergunta - E a reunião frente à partida de futebol?
Almodóvar - Mostra uma verdade. Não há nada de mais genital que uma partida de futebol. Por sinal, na TV espanhola neste momento, só existem programas "rosa" e jogos de futebol.
Pergunta - Você decidiu deliberadamente trocar todos os seus atores?
Almodóvar - Normalmente, à exceção de "Mulheres à Beira de um Atasque de Nervos", que escrevi para Carmem (Maura), e "Ata-me", para Antonio (Banderas), só escolho os atores depois de terminado o roteiro.
Agora, quando terminei de escrever, não via meus atores habituais nos papéis. O personagem de Victor lembra um pouco aquele de Banderas em "Ata-me". Mas eu precisava de alguém mais ingênuo. Liberto Rabal era perfeito.
Banderas, na idade em que está, poderia fazer o papel de David, mas Hollywood o tornou muito caro. E Javier Bardem, que escolhi em seu lugar, teria adorado fazer Victor. Mas para mim havia um físico que correspondia completamente a David: bastante musculoso, com o pescoço e ombros bem largos, como os paraplégicos.
Pergunta - E as mulheres?
Almodóvar - Francesca Neri me agradou por sua qualidade felina. Bem, Elena tem um papel de culpabilidade, e você poderá dizer que essa não é a característica dominante dos felinos.
Digamos que ela me agrada por sua beleza afetada. Tão branca, parece vampirizada. Quanto a Angela Molina, fazia tempo que queria fazer um filme com ela.
Foram escolhas do ponto de vista físico. Precisei de tempo pra levá-los aonde eu queria. Para um terreno de sinceridade, onde eles se mostrassem por inteiro. Isso me custou o dobro de filme que "A Flor de Meu Segredo".
Pergunta - E o roteiro?
Almodóvar - Foi, junto com o de "Kika", o que mais me custou para escrever. É muito complexo, cheio de elipses. Tive também muitas hesitações por causa dos paraplégicos. Finalmente, evitei o terreno da sexualidade, onde descobri coisas perturbadoras, e insisti nos problemas do casamento.
Pergunta - Que coisas perturbadoras?
Almodóvar - Bem, eles conseguem transar e queriam muito que eu falasse disso. São pessoas combativas, que reivindicam se resolver em tudo, como os outros.
Assim, eles têm ereções usando duas substâncias injetáveis. Mas as ereções duram quatro horas, e, como eles não têm mais sensibilidade, podem se machucar seriamente sem perceber.
Psicologicamente também fiquei sem jeito. Eles têm uma coragem e um orgulho formidáveis. Mas isso não os impede de ter os mesmos defeitos que todo mundo.
Mesmo assim, levei algum tempo para me decidir a não fazer de David um super-herói exemplar, mas apenas um homem, de comportamento humano, que se defende com unhas e dentes quando corre o risco de perder a única coisa que tem: Elena.
Pergunta - E o 13º filme?
Almodóvar - Tenho vários projetos. Entre eles, um "western". Uma história que se passa em um bordel do "far west". Uma índia trabalha lá e tem um filho. Ele cresce e as putas o prostituem. Vai ser um "western" do meu jeito, com homossexualidade e droga, mas também com índios e xerifes.

Tradução Luiz Antonio Del Tedesco

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