São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
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O diretor do ridículo do dia-a-dia

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DO MAIS!

É preciso evitar a domesticação do cinema de Pedro Almodóvar, uma certa assimilação "cool", "mainstream", "de arte".
Tudo nele parece picante, bisbilhoteiro, mulherzinha, sim. Mas o Almodóvar de salão é só fachada. Por trás, o terror impera. Um mundo pânico, selvagem, instintual, desorganizado. Dali só saem arrumados os muito hipócritas.
Nascido em 1949 no interior da Espanha, Almodóvar participou no início dos anos 80 da chamada "movida madrilenha" -famosa dessublimação juvenil ao cabo do poder prepotente e patriarcal do general Franco (1892-1975).
Naquele momento, muitos deram de fazer artes. Almodóvar tentou a literatura, mas foi fisgado pelo cinema. Seus filmes da época não passam de telenovelas underground. Apresentam contudo o diretor que nós gostamos: escândalo, humor, mulheres doidas, drogas e muito erotismo.
O espectador menos eufórico terá que esperar "Matador" (1986) para ver Almodóvar engendrar um verdadeiro drama, de arcabouço narrativo mais sólido e construções não-narcísicas das situações e dos personagens. Desenvolvem-se também seus dotes plásticos (cor, luz, plano) e cenarísticos.
"A Lei do Desejo" (1986) é um "cult" homossexual. É também o filme em que Almodóvar expõe e expia com ímpeto trágico um recalque -e fica livre dele. Seu cinema vai se tornar mais e mais pessoal, no sentido forte da palavra: maestria de uma linguagem e observação firme do objeto filmado.
"Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos" (1987), seu filme mais famoso, aproxima-o crucialmente de certa comédia romântica hollywoodiana que abrilhantou as telas nos anos 30 e 40 (Lubitsch, Hawks etc.). O sangue quente do espanhol organiza-se sob o olhar puritano.
Daí em diante, Almodóvar é um dos grandes diretores desta época: roteirista de primeira, com diálogos de ouro na ponta da língua, um virtuose da encenação, observador incomum dos sentimentos.
Um grande diretor deste tempo, em cujos filmes o mesquinho, o ridículo e o patético é que vão tecendo as vidas do dia-a-dia.
Seus personagens, transidos por sobras de culpa e cultura (mortas), percorrem cegos um intrincado labirinto de paixões sem nome, sem sentido e sem destino. No mundo sem lei, resta a lei do desejo.
Mas, se a pornografia é um arremedo e o amor, um fóssil, onde está a cena? O último (melo)drama é o da carne trêmula, ou da vida gritando sua inconformidade no meio das trevas.
Terrível em Almodóvar não é a radiografia generosa dos pecadilhos cotidianos: é o convite à flor da pele para as grandes fugas e para as maiores e piores maldades.

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