São Paulo, sexta-feira, 21 de novembro de 1997
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Filme coloca no mesmo saco esquecidos e privilegiados

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Não é fácil compreender duas opções da produção de "Navalha na Carne". Por que, por exemplo, trazer o cubano Jorge Perugorría para interpretar Vado, um malandro tão brasileiro? Por que fazer de Vera Fischer uma prostituta velha e feia se disso ela não tem nada?
Essas escolhas, porém, parecem orientar o projeto de Neville D'Almeida, a partir da peça de Plínio Marcos. "A partir" porque, mais (ou menos) do que uma adaptação, o diretor parece ter buscado ali um suporte. Plínio Marcos, autor paulista e santista, remetia, na peça, a uma relação sadomasoquista entre uma prostituta e seu cafetão, mediada por um faxineiro homossexual. Por todos os poros -a linguagem, a cenografia- sente-se um ambiente de "bas-fonds", de escória; crueldade que se dirige às pessoas e à vida.
D'Almeida deixa a impressão de ter buscado ampliar esse tema, por uma ostensiva estilização dos elementos. Trazendo gente bonita e cenários glamourosos, acrescentando logo no início uma cena de estupro patrocinada por um ricaço, D'Almeida faz a história transitar do submundo à alta-roda: coloca no mesmo saco o Brasil dos esquecidos e o dos privilegiados.
Nesse sentido, os dois atores centrais caem como uma luva. Quem melhor do que Vera Fischer -cujo sucesso convive com dramas pessoais bem conhecidos- para exprimir essa convivência do fracasso e do sucesso? Ou do que um ator cubano famoso para evocar a convivência entre marginalidade (de Cuba) e êxito (pessoal)?
Mas "Navalha na Carne" não é o suporte ideal para essa leitura abstrata. Sua linguagem é não só brutal como bruta, muito específica. Seus seres cheiram a zona do porto. Os desta versão cinematográfica cheiram a perfumes finos.
Se D'Almeida quis falar de um mundo em que o chique e o sórdido são tão próximos que se superpõem, então o filme não consegue eliminar o descompasso entre os mundos que evoca. Antes pelo contrário. O que vemos é um espetáculo esquizofrênico, em que Perugorría gasta o seu talento para se exprimir num portunhol penoso. Como o diálogo é quase todo em gíria, beiramos o risível.
O mesmo com Vera Fischer: quando Vado chama Neusa Suely de galinha velha, o espectador fica boquiaberto na cadeira, tentando saber a quem ele se dirige. Estamos então diante de um caso de "miscasting" radical. Ou então o projeto de D'Almeida desta vez não se expõe com a devida clareza.
Restam, nesse caso, bastante evidentes, o ataque à hipocrisia que o filme abriga e à santificação da prostituta (na cena final). Ambos um tanto inconsistentes, já que a peça era um ataque à hipocrisia.
Num projeto de difícil compreensão -difícil distinguir se é um percurso no meio de caminho ou uma empreitada oportunista-, fica a impressão de uma série de coisas que não se colam: atores a personagens, palavras a seres, signos e coisas. Às vezes, "Navalha" lembra um desses filmes de Ed Wood. Com a diferença de que, em Ed Wood, as coisas se guiavam por uma sublime, porém incompetente, vontade de se exprimir.
Aqui, há dinheiro e competência na expressão. O resultado é agradável, mas dá para perguntar: do que e de quem se fala, afinal?
Não há como comparar esta nova versão com a de Braz Chediak (70), com Glauce Rocha (soberba) e Jece Valadão (apropriadíssimo).

Filme: Navalha na Carne
Produção: Brasil, 1997
Direção: Neville D'Almeida
Com: Vera Fischer, Jorge Perugorría
Quando: a partir de hoje, nos cines Marabá, Bristol, Lar Center 1 e circuito

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