São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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País continua uma droga, diz viúva de Jango

LUIZ ANTÔNIO RYFF
ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE

Em 65, Maria Thereza Goulart, mulher do então recém-deposto presidente João Goulart (1919-1976), fez um pedido que o ex-presidente João Baptista Figueiredo repetiria anos depois: que a esquecessem.
"Estava cansada da aparência de primeira-dama. Fiquei com o estigma da mulher bonita, jovem e burra", explica ela, que reconhece que, até hoje, não gosta de falar.
Ela abre exceção à Folha para defender Jango (apelido de Goulart), 21 anos após sua morte, acusado em livros recém-lançados (a biografia de Ernesto Geisel e a transcrição das conversas de Lyndon Johnson, presidente dos EUA), de ser um fraco.
"Quero que mostrem então se apareceu alguém forte depois do Jango", diz ela, que afirma não ter nenhum carinho pelo poder nem pelos políticos. "E acho que o país continua uma droga."
Maria Thereza, que já foi apontada como uma das mulheres mais bonitas do mundo, diz que só guarda mágoas de 64.
"Nunca me empolguei com situações, com dinheiro, com poder, com nada", diz ela, que prepara um livro de memórias.
Aos 58 anos, oito netos, Maria Thereza se considera vaidosa e já fez duas plásticas. "Não dá para deixar despencar nada. Tem que segurar o quanto puder." Mas nunca se casou novamente.
Ela lembra da véspera da morte do marido, quando, a caminho de sua fazenda em Mercedes (Argentina), o casal passou por Paso de los Libres, viu a ponte que ligava a cidade a Uruguaiana, e Jango comentou que precisava arranjar um disfarce para retornar ao Brasil.
Horas depois, morto, Goulart atravessou a ponte, embalsamado, dentro de um caixão.
Leia abaixo trechos da entrevista.
*
Folha - Em livro de memórias recém-publicado, o presidente Ernesto Geisel afirma que Goulart era um fraco...
Maria Thereza Goulart - Não acho que tenha sido fraco. Mas acho melhor ser fraco do que ser ladrão. Nunca tiveram nada para dizer dele. Incompetente não era, porque teve uma carreira brilhante como político. Não saiu de estancieiro a presidente da República.
Folha - Geisel o acusa de ser dominado por esquerda e sindicatos.
Maria Thereza - E Geisel era pelos militares. Ele queria o quê? O Brasil era dos trabalhadores.
Folha - Livro publicado nos EUA sobre Lyndon Johnson confirma a participação norte-americana no movimento militar e o conhecimento prévio de sua deflagração. Goulart sabia dessa articulação?
Maria Thereza - Várias vezes falou que eles estavam por trás.
Folha - Goulart lhe falou sobre a iminência de um golpe contra ele?
Maria Thereza - Falou. Quando foi ao Rio, pouco antes do comício (da Central, em 13 de março), ele falou para me preparar para o pior. Disse que a situação estava tensa e podia acontecer qualquer coisa. Depois, em nova viagem ao Rio, ele disse: "Prepara as crianças que eu não sei se volto".
Folha - A cena mais marcante do governo foi o comício, com a sra. serena, ao lado de Goulart, em um dos momentos mais tensos da história do país. Em que pensava?
Maria Thereza - Foi minha estréia em comício. E me senti emocionada com o delírio do povo. Pensava como era possível tanta vibração. Pensava naquela gente toda que estava ali. Foi o momento mais emocionante da minha vida.
E estava preocupada. Quando subi no palanque, o Darcy (Ribeiro) me disse que haviam ameaçado colocar uma bomba lá.
Folha - O comício não seria o equivalente de Goulart ao suicídio de Getúlio? Uma tentativa de jogar a população contra um golpe?
Maria Thereza - Penso exatamente isso. O povo queria aquilo que ele pensava. Jango queria mostrar que a população estava com ele. Só que não deu certo...
Hoje, o povo continua querendo tudo que o Jango queria. E continua não tendo nada. A história do Brasil é essa. E ainda dizem que o Jango era fraco. Quero que me mostrem então se apareceu alguém forte depois do Jango.
Folha - Há quem acredite que Goulart planejava um golpe para se perpetuar no poder.
Maria Thereza - Não é verdade.
Folha - Por que ele não resistiu?
Maria Thereza - Não tinha como. A verdade é que ele estava cercado de pessoas que não tinham poder nem força. O grande problema foi quando ele trocou o (Amaury) Kruel pelo Assis Brasil (na chefia da Casa Militar). O Assis Brasil era um fraco, não sabia nada de nada. Não sabia nem falar. É o mesmo que organizar uma casa e colocar pessoas incompetentes na sua casa, nada funciona.
Folha - Onde a sra. estava quando houve o golpe?
Maria Thereza - Estava na granja do Torto com as crianças e alguns amigos. Fiquei escutando o rádio. Não sabia se devia ficar. Conseguimos falar com o Tancredo (Neves, que foi primeiro-ministro) e ele disse para aguardar lá.
Mandaram ir para o Rancho Grande (a fazenda em São Borja). Sempre tive horror daquele lugar e fui cair lá (onde ela tentou suicídio logo após casar). Foi quando me senti mais angustiada e deprimida. Aquela fazenda, aquele silêncio, aquela casa fechada...
Folha - A sra. saiu com uma malinha e uma sacola. O que levou?
Maria Thereza - Saí com um "tailleur". Levei duas roupas para as crianças, uma saia de couro, um blazer, um conjunto, duas camisas de seda. Na sacola, levava perfumes, pinturas, essas coisas. Ninguém avisou que sairia do país.
Folha - O que a sra. deixou lá?
Maria Thereza - Tudo. Roupas, roupas das crianças, carros, quadros, jóias, perfumes, cachorro...
Folha - Como Goulart reagiu à vida no exílio?
Maria Thereza - Foi muito doloroso. Ele se envolveu muito com a fazenda. Foi uma terapia ocupacional. Mas com o passar do tempo aquilo foi se tornando monótono. Ele começou a ficar mais triste, abatido. Sofria com a falta dos amigos. Imagina um homem que sempre tratou de política de repente não ter com quem conversar sobre política ou assunto nenhum.
Sempre pensei que fôssemos voltar logo. Mas, quando fiz 30 anos, Jango me disse que eu sairia do exílio com neto no colo (o neto mais velho, Christopher, nasceu dois meses antes da morte de Goulart e da volta de Maria Thereza).
Folha - E sonhava em voltar.
Maria Thereza - Era só no que pensava. Engraçado que ele não falava muito da política do Brasil. Mas falava muito em viver as coisas dele, os negócios, as fazendas.
Folha - Ele havia desistido da vida pública?
Maria Thereza - Acho que sim. Perguntei se ele seria candidato e ele respondeu que nem em sonho. Ficou muito decepcionado, muito desiludido... bom, mas isso todo político diz.
Folha - No exílio, Goulart bebia um pouco, não?
Maria Thereza - Bebia o que metade do pessoal bebe. Gostava muito de uísque, mas nos últimos tempos ele nem bebia porque fez um regime. Mas, quando bebia, havia momentos em que ficava um pouco agressivo. Mas eu também não era fácil. Sou muito temperamental. Tenho um gênio difícil. E enfrentei uma pessoa de gênio difícil. Havia entre nós certo conflito de temperamento.
Folha - Ele era muito mulherengo. Conviver com isso era difícil?
Maria Thereza - Quando casei eu já sabia. Antes do casamento, ele tinha três ou quatro namoradas. E eu não pretendia me casar cedo. Queria estudar, trabalhar, construir uma carreira, mas ele insistiu. Eu sabia a fera que ia enfrentar. Não achei que estivesse me casando com um príncipe encantado.
Sabia que ele tinha aventuras, mas ele nunca deixou de gostar de mim, de me tratar bem. Mas cansei de sair grávida atrás dele no Rio para saber onde ele estava, porque sumia de casa e não aparecia.
Eu era muito garota e relevava um pouco. Mas no exílio eu disse: "Aqui a coisa tem que correr sério, senão nós vamos sofrer muito". Já estava com mais de 30 e queria uma família unida.
Folha - Houve quem lhe atribuísse alguns casos também.
Maria Thereza - Tive uma educação muito severa. Não fui preparada para essas coisas de namoro e homem. Casei virgem com 17 anos. Hoje é fora de moda. Mas não gosto dessas coisas de sai com um, sai com outro.
Ninguém venha dizer que uma primeira-dama tem condições de ter uma aventura. Você tem sempre uma pessoa junto por questões de segurança. Mesmo assim, isso nunca me passou pela cabeça. Era casada com um homem bonito, poderoso, rico, com as mulheres desejando. Eu ia procurar quem?
Folha - Mas a sra. era cantada.
Maria Thereza - Claro que eu era paquerada. Mas você não pode se fascinar com nada que é poderoso. Nem com a beleza. Porque tudo acaba. A beleza acaba, o dinheiro acaba, a idade chega.
Folha - Na época da morte de Goulart houve boatos de que ele havia sido assassinado.
Maria Thereza - Estava sozinha com ele. Viajamos para a fazenda em Mercedes e chegamos à noite. Os empregados moravam longe.
Folha - Como foi a morte dele?
Maria Thereza - Morreu dormindo. Tínhamos saído de Salto Tacuarembó (Uruguai) e estávamos cansados. Eu não conseguia dormir por causa de uma janela que batia. Acendi a luz e fui ver. Voltei e apaguei a luz. Mas senti que ele estava respirando diferente e acendi a luz. Ele parecia sem ar e soltou a cabeça. Pensei que tivesse desmaiado. Chamei, sacudi e aí comecei a gritar. Saí correndo pelo mato de pijama para chamar o capataz. Ele veio armado pensando que era assalto. Pedi que ele pegasse o carro e chamasse um médico.
Não acreditava no que estava acontecendo. Sozinha sem saber o que fazer... foi um horror.
Folha - Como foi a volta?
Maria Thereza - Fomos até Paso de los Libres. Não queriam deixar ele entrar no Brasil. Consultaram Brasília. O carro ficou parado com o corpo dentro. Queriam tirar o caixão para examinar. O Almino (Affonso, ministro do Trabalho de Goulart) não deixou.
Eu queria enterrar o Jango na fazenda, no jardim pelo qual ele tinha paixão. Não queria trazer para o Brasil. Mas foi uma pressão de todo mundo. Os políticos todos achavam que ele devia voltar para o Brasil. Aquela coisa de político...
Folha - E os políticos de hoje? A sra. apoiou o Collor.
Maria Thereza - Votei porque todo mundo fez isso. Era aquela coisa maravilhosa que despencou do céu. Fiquei fascinada e achei que seria um grande presidente.
Folha - A sra. não fez campanha para Brizola (cunhado de Goulart). Brizola se coloca como herdeiro político de Goulart, mas em 64 não eram tão afinados...
Maria Thereza - Considero ele um dos políticos mais inteligentes do país, mas sempre achei que o Brizola não tem essa conotação de herdeiro político do Jango. Ele é muito individualista. Fundou um partido para ele. Brizola e Jango mantinham uma relação cordial. Não havia maiores afinidades.
Folha - O que pensa de FHC?
Maria Thereza - Eu o respeito por ser o chefe da nação. Não tenho direito de fazer crítica. É o respeito pelo cargo. Julgo as pessoas que falam mal do meu marido.
Folha - O que a sra. acha de Ruth Cardoso, que não gosta de ser chamada de primeira-dama e tem uma participação mais política?
Maria Thereza - Não acho que participar de festas, viagens e eventos sociais faça uma primeira-dama. A não ser Darcy Vargas, nenhuma delas teve participação política. Nem d. Ruth. Que trabalho ela está fazendo? Eu não vejo. Não há nenhuma assistência social. A Comunidade Solidária é muito vaga. Meu trabalho na LBA era muito bom perto do que tenho visto. Era um trabalho sério, organizado. Não havia nada de ilegal.

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