São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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A resposta do Brasil à crise

ANTONIO KANDIR

Este não é um artigo para especialistas. Os eventos das últimas semanas nos mercados financeiros de todo o mundo são de entendimento complexo mesmo para economistas experientes e de boa forma, que dirá para quem não tem a obrigação profissional de debruçar-se cotidianamente sobre assuntos dessa natureza.
Minha intenção aqui é responder, em linguagem a menos cifrada possível, três perguntas que muitos devem estar se fazendo: o que deflagrou a crise nos mercados financeiros internacionais?; por quê eventos aparentemente tão remotos atingiram o dia-a-dia das pessoas?; e quais os objetivos e o sentido das medidas tomadas pelo governo para fazer face ao novo ambiente internacional?
Começo pela segunda questão, ou seja, por que eventos aparentemente tão remotos alcançaram a vida cotidiana dos brasileiros.
Nas últimas semanas, ocorreram quedas acentuadas do preço de ativos (visíveis nas Bolsas de Valores, em todo o mundo) e bruscas mudanças das taxas de câmbio de alguns países, especialmente no Sudeste Asiático. Nesse processo, verificaram-se perdas financeiras da ordem de US$ 2 trilhões, reduzindo drasticamente a quantidade de recursos disponíveis, em todo o mundo. Como consequência, cresceu o temor dos investidores de incorrer em novas perdas. É o que se quer dizer quando se fala em diminuição da liquidez internacional e aumento da aversão ao risco.
São esses dois fenômenos -e as dificuldades que eles colocam para o financiamento das economias dos países "emergentes", entre eles o Brasil- que explicam por que eventos aparentemente tão distantes da vida das pessoas produziram efeitos que nos atingem diretamente, mesmo que jamais tenhamos sequer pensado em aplicar em ações. Todos -governo, empresas e famílias- temos de nos ajustar a um ambiente de menor disponibilidade de recursos e maior seletividade das fontes de crédito.
É bom dizer com clareza que se trata de uma crise profunda e de desdobramentos ainda imprevisíveis. A crise se prende originariamente à dificuldade, senão recusa, dos países do Sudeste da Ásia de ajustar suas economias ao declínio de um ciclo exuberante de crescimento econômico. Ao invés do ajuste oportuno a condições menos excepcionais de crescimento, os países da região -a maior parte deles sob regimes autoritários- decidiram prolongar temerariamente os tempos de bonança econômica. Para tanto, valeram-se do fato de que continuavam bem cotados no mercado internacional de capitais e podiam complementar sua já elevada taxa de poupança interna com empréstimos e investimentos externos. Sem dificuldades aparentes para financiar déficits elevados em transações correntes e com uma política de crédito frouxa, alimentaram um boom de investimentos especulativos nos mercados de ações e imóveis, à custa da solidez de seus sistemas financeiros. Quando se tornou claro que os investimentos realizados não produziriam os retornos pretendidos, em vista da insustentabilidade de taxas elevadas de crescimento, sobreveio forte queda do valor dos ativos, acompanhada de fuga das moedas nacionais e sucessivas desvalorizações cambiais forçadas pelo mercado.
Num primeiro momento, a crise permaneceu circunscrita ao Sudeste Asiático (Tailândia, Indonésia, Malásia e Filipinas). Os demais núcleos da região -China, Taiwan, Cingapura e Hong Kong, ao centro, e Japão e Coréia, no Nordeste Asiático- não sentiram senão residualmente os reflexos desses eventos. O grau de interpenetração dessas economias, no entanto, criou o ambiente para um contágio generalizado em toda a região. O marco desse processo foi a reação ao ataque a Hong Kong, em 23 de outubro. Formou-se então a percepção de que a crise generalizara-se na Ásia e ficou a dúvida sobre a capacidade de países como Hong Kong, Coréia e mesmo o Japão resistirem a eventuais desdobramentos. A partir daí -dada a importância da região na economia mundial- a crise internacionalizou-se, afetando tanto as economias centrais, como os demais países emergentes.
Nesse novo contexto, que ficou claro ao final de outubro, cresceram muito as chances de ocorrência de ataques especulativos contra as moedas de alguns países, até aquele momento incólumes à crise. Países que, na avaliação do mercado, tendo beneficiado-se grandemente da situação anterior de farta liquidez internacional, representavam, conforme um conjunto de variáveis de avaliação, riscos de novas perdas. Dentre eles, o Brasil.
Para entender a percepção que se formou quanto à vulnerabilidade relativa de cada país nesse novo contexto, bem como as razões da pronta reação do governo brasileiro, vale a pena apresentar esquematicamente uma tipologia de países vulneráveis a ataques cambiais. Diria que o tipo ideal de um país vulnerável apresenta a seguinte combinação de características: tem regime cambial muito pouco flexível e câmbio extremamente valorizado; um sistema financeiro desequilibrado; desajuste nas contas públicas; desajuste nas contas externas, com problemas importantes para financiá-las no curto prazo; dificuldades políticas para fazer o ajuste necessário nas contas públicas e/ou nas contas externas; ativos muito valorizados; e condições pouco atraentes para a produção de bens "tradables", ou seja, produtos exportáveis ou que concorrem com importados.
O país que apresenta essas nove características, em alto grau, está no topo da escala dos países vulneráveis. Com um regime cambial muito pouco flexível e câmbio extremamente valorizado, a existência de um sistema financeiro desequilibrado deixa-o sem liberdade para movimentar a taxa de juros. Não tendo liberdade para movimentar a taxa de juros, não está em condições de opor resistência imediata à ameaça de um ataque especulativo. Está indefeso, como ficou demonstrado no Sudeste Asiático.
É verdade que o Brasil não tem ainda uma situação consolidada de contas públicas e contas externas -embora ambas apresentem trajetória positiva. Mas, ao contrário dos países do Sudeste Asiático, que enfrentam problemas de contas externas em grau muito mais elevado e estão vivendo processos de deterioração da capacidade de governo, temos as condições políticas para ajustar essas duas variáveis (contas públicas e contas externas), na velocidade e magnitude exigidas pelo novo contexto internacional. Em uma palavra, nossa capacidade de resposta política é maior, como ficou claramente demonstrado nas duas últimas semanas.
Prossigamos na tipologia. Se um país tem regime cambial muito pouco flexível, câmbio extremamente valorizado, sistema financeiro desequilibrado, desajustes de contas públicas e contas externas, dificuldades de financiamento das contas externas, problemas de paralisia política e, além de tudo isso, encontra-se ao final de um ciclo de crescimento, com ativos sobrevalorizados, então ele veste o figurino perfeito do país sujeito ao ataque especulativo. Este último ponto é importante, inclusive porque determina a capacidade de financiamento das contas externas: o Brasil encontra-se no início de um ciclo de expansão, com ativos altamente atraentes ao capital externo, o que nos dá uma perspectiva melhor de financiamento estável do déficit em transações correntes, mesmo em condições de retração de liquidez e aumento da aversão ao risco.
Quase desnecessário dizer que essas variáveis têm pesos diferenciados na determinação do risco imediato de ataques especulativos. Há variáveis que podem ser manejadas com horizontes mais longos de tempo (contas públicas e contas externas). Há outras, no entanto, cujo comportamento colocam riscos fatais de ataque especulativo no curto prazo (sistema financeiro, financiamento das contas externas, capacidade política de resposta à crise e valor dos ativos domésticos). Para manejar aquelas é preciso estar em posição de força quanto a estas. Dadas as variáveis estruturais, uma coisa é decisiva: demonstrar disposição e capacidade políticas de tomar as medidas necessárias para enfrentar a crise de frente.
Objetivamente são grandes as diferenças entre o Brasil e os país que sofreram o impacto imediato da crise. Nas dimensões que esta assumiu, porém, instalou-se uma percepção indiferenciada por parte dos investidores, o que nos colocava sob o risco de um ataque especulativo.
A análise realista desse quadro levou o governo brasileiro a adotar um conjunto articulado de respostas à abrupta e forte elevação do risco de o país sofrer um ataque contra sua moeda. Ao mesmo tempo aceleramos o processo de ajuste das variáveis associadas a riscos de mais longo prazo e atuamos de modo pronto e incisivo sobre as variáveis associadas a riscos iminentes. Esse conjunto de respostas constitui um programa de ações de defesa da moeda e preservação das perspectivas de crescimento de longo prazo do país, sem representar mudança de rumo na condução da política econômica.
São 13 os pontos básicos desse programa de ações, a saber:
1) Para o primeiro combate à crise, valemo-nos do uso de instrumentos de natureza cambial, desde as reservas internacionais até títulos públicos indexados ao dólar, para fazer face à demanda do mercado por "hedge" (proteção), passando por diversos outros tipos de ação a cargo do Banco Central. O montante das reservas internacionais e a credibilidade conquistada pelo governo brasileiro nos últimos anos foram (e continuam a ser) os principais trunfos para esse primeiro combate à crise, como ficou claro entre os dias 23 e 29 de outubro;
2) É certo, no entanto, que os instrumentos de natureza cambial não são suficientes para debelar um ataque especulativo num ambiente de tamanha retração de liquidez e aversão ao risco. Houve assim necessidade de elevar fortemente as taxas de juros. De fato, a taxa básica efetiva elevou-se de 1,58% para 3,05% ao mês, decisão (tomada no dia 30 de outubro) absolutamente indispensável para punir a especulação contra o real e demonstrar a disposição férrea do governo brasileiro de preservar a moeda nacional;
3) Para tornar crível a capacidade do governo brasileiro de sustentar a defesa monetária contra um ataque especulativo, era indispensável promover uma contração fiscal (cortes de gasto mais aumento de impostos) capaz de produzir um expressivo resultado primário (receitas menos despesas não financeiras), acentuando a trajetória já observada de queda do déficit público. Esse é o objetivo das medidas de ajuste fiscal de emergência anunciadas no dia 10 de novembro. É muito importante notar que a contração fiscal, ao mesmo tempo em que respalda a decisão de elevar os juros, cria as condições necessárias para que possamos reduzi-los mais à frente, como já começamos a fazer, diminuindo os impactos da defesa da moeda sobre as empresas, as famílias e o próprio governo;
4) Mas não basta fazer o ajuste fiscal de emergência. É preciso estabelecer as condições necessárias para a melhoria permanente das contas públicas. Daí ter o governo redobrado seu empenho em favor da aprovação, sem demora, das reformas da administração pública e da Previdência. Vale sublinhar que, sob o impacto da crise, o Congresso está respondendo à altura;
5) Nesse processo de intensa mobilização, é fundamental persuadir a sociedade da necessidade das ações realizadas pelo governo. A questão é o entendimento da necessidade e o respaldo à defesa determinada da moeda. Trata-se menos de obter apoio ao governo que apoio ao Real. O presidente Fernando Henrique deu o exemplo maior a esse respeito: em nome da estabilidade, tomou medidas duras às vésperas de um ano eleitoral;
6) Simultaneamente o governo tomou medidas de apoio adicional às exportações, às micro, pequenas e médias empresas e à produção nacional submetida à concorrência dos importados. Importa notar que essas medidas, além de oportunas em si mesmas, compõem a lógica do programa de ações de defesa da moeda. Esse programa não é consistente com um quadro recessivo. Sob recessão, poderia haver perda de arrecadação, comprometendo o ajuste fiscal, e dificuldades no sistema financeiro. Fizemos o ajuste fiscal de emergência para poder reduzir a taxa de juros mais à frente, o que, repito, já começamos a fazer. E tomamos um conjunto de medidas de apoio adicional às exportações e à produção nacional para assegurar, num ambiente de gradual descompressão monetária, um patamar mínimo de crescimento. Registre-se que essas medidas vêm se somar a um conjunto de iniciativas em curso voltadas ao investimento em infra-estrutura e construção civil cujos efeitos já são palpáveis em todos os indicadores de produção e crescimento do produto;
7) Como vimos, o governo agiu fortemente na área fiscal. Os efeitos sobre as contas externas se farão sentir indiretamente. Diminuindo o déficit fiscal, diminui a pressão dos gastos do governo sobre a demanda interna e se reduz o déficit em transações correntes. Ocorre que não basta esta ação indireta sobre o déficit em transações correntes. Para reduzi-lo de maneira bastante expressiva -e nós precisamos fazê-lo, porque encolheram-se os recursos externos disponíveis para financiá-lo-, temos de atuar diretamente sobre os diversos componentes das contas externas. Nesse aspecto, a primeira linha de ação a destacar consiste nas medidas de apoio adicional às exportações, que já vêm em ritmo expressivo de crescimento (11,1% na comparação de janeiro/outubro de 1997 com igual período do ano anterior; o volume de exportações de manufaturados, em particular, aumentou 18,4%, na comparação de setembro de 1997 com igual mês do ano anterior): fortalecimento do BNDES como banco de comércio exterior; possibilidade de contratação de crédito antecipado por parte dos fornecedores de insumos para produtos de exportação; implementação do seguro de crédito para exportações, contra o risco comercial de longo prazo e o risco político e extraordinário etc.;
8) Ao mesmo tempo, agimos sobre as importações, cujo ritmo de crescimento, vale notar, já vinha diminuindo. Elevamos em três pontos percentuais a Tarifa Externa Comum do Mercosul, dentro dos limites da OMC, o que compensa, ao menos parcialmente, a incidência exclusiva de PIS-Cofins sobre a produção nacional.
9) Além disso, tomamos medida para proteger o produtor brasileiro da concorrência desleal de importados e assim reduzir o nível das compras externas do país. Ela consiste em acelerar a implantação do sistema de valoração aduaneira, com vistas a coibir a prática fraudulenta de subfaturamento de importações;
10) Acresce que, e também para conter as compras externas, serão realizadas operações especiais de importação. O melhor exemplo é a operação que a Petrobrás está estruturando junto com o BNDES. Ela consiste em pagar parte das importações presentes de petróleo com o compromisso da entrega futura de parte da receita decorrente de investimentos que a Petrobrás está realizando em parceria com empresas estrangeiras do setor;
11) Ainda na área externa, decidimos agir diretamente sobre a balança de serviços, adotando medidas para reduzir despesas associadas às viagens internacionais. Essas despesas cresceram 32% na comparação de janeiro a setembro de 1997 contra igual período do ano anterior, totalizando US$ 3,3 bilhões nos primeiros nove meses deste ano e apontando para despesas próximas a US$ 5 bilhões em todo o ano de 1997;
12) Afora as medidas para reduzir o déficit em transações correntes, tomamos medidas para melhorar o seu financiamento. Ou seja, vamos ter um déficit externo melhor e vamos financiá-lo com capitais de melhor qualidade. Essa tendência já se vinha formando, agora iremos robustecê-la ainda mais. Para tanto, tem grande importância o programa de privatizações, porque ele atrai um fluxo de capitais estáveis, o chamado investimento direto estrangeiro, que estão mirando retornos de longo prazo. Assim, incluímos no PND a privatização de 15 mil km de rodovias federais -trechos já identificados- e do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), além de medidas para viabilizar ampla privatização no setor de saneamento, com ganhos sociais importantes. A disponibilidade de uma massa de ativos públicos prontos para alienação ou concessão constitui um dos grandes trunfos do Brasil para enfrentar as dificuldades de financiamento externo agora colocadas. O programa de privatizações, que já não encontrava paralelo nesse momento no mundo, ganhou ainda maior envergadura;
13) Adicionalmente, também com vistas ao financiamento do déficit em transações correntes, o governo tomou medidas para facilitar a colocação de papéis brasileiros no exterior. A mais importante consiste na securitização de recebíveis da Eletrobrás e colocação paulatina dos títulos no mercado internacional, no valor total aproximado de R$ 17 bilhões. Trata-se de ativos que, por contar com garantia real de alta qualidade, devem encontrar demanda expressiva, mesmo numa conjuntura de menor liquidez e maior aversão ao risco.
Esse conjunto de ações tem o tamanho da crise internacional. São medidas duras, que visam manter, em uma situação de emergência, as conquistas da estabilidade econômica e a dinâmica de construção das bases do crescimento sustentado. Os custos econômicos e sociais da inação seriam com certeza muito maiores. Que não paire dúvida sobre isso: não há processo mais impiedoso e iníquo de empobrecimento de um país que a desvalorização de sua moeda sob o impacto de um ataque especulativo de grandes proporções.
Salvo um aprofundamento extraordinário da crise internacional, esse conjunto de medidas é suficiente para assegurar que o país sairá desse período de turbulência em condições revigoradas de crescimento e estabilidade. O governo irá implementá-las em toda sua extensão e profundidade, e conta com a cooperação de todas as lideranças políticas relevantes para fazê-lo.
O governo, no entanto, não restringirá sua ação às fronteiras do país. Vamos atuar, no limite máximo de nossas possibilidades, e elas cresceram desde a implantação do Real, para que os riscos de aprofundamento da crise internacional sejam minimizados, agora e de forma permanente. Para tanto, duas iniciativas são fundamentais:
1) Empenho do presidente Fernando Henrique, junto aos países do G-7, para que se estabeleçam mecanismos capazes de interromper de vez a autofagia cambial dos países asiáticos. Todas as grandes economias do mundo têm interesse de bloquear esse processo a tempo. Desvalorizações competitivas selvagens no conjunto dos países asiáticos fariam aumentar o déficit comercial dos Estados Unidos, criariam incertezas quanto à trajetória do dólar e poderiam conduzir a uma alta de taxas de juros no mercado americano, jogando a economia mundial, aí sim, em depressão;
2) Na mesma linha, continuidade do empenho em favor da definição de regras de prudência para os mercados financeiros e de capitais. Essas regras, dada a integração global dos mercados, têm de ser de âmbito internacional, ou terão pouca eficácia.
Estou convicto de que, nesse processo, o Brasil vai consolidar um lugar de destaque no mundo do próximo século. Como um espaço extraordinário de oportunidades de investimento, mas também -e não menos importante- como um país maduro, com opinião pública e instituições democráticas fortes, que sabe enfrentar seus desafios de frente, com coragem e transparência. Disso depende o bem-estar dos brasileiros.

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